Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 1 de Março de 1976?
Manuel Joaquim Alexandre – Estava no porto de Setúbal, onde era estivador. Na altura fazia parte da direcção do Sindicato dos Estivadores e Barqueiros. E isso deveu-se ao facto de, logo a seguir ao 25 de Abril, termos tomado o Sindicato pois o pessoal sentia-se revoltado contra o facto da estrutura não os representar. Pelo contrário, era um Sindicato muito antigo e quem lá mandava eram os chefes a mando dos patrões. E foi enquanto membros do Sindicato que desencadeámos uma luta a que chamámos socialização do porto de Setúbal.
No dia 1 de Março estávamos nós numa posição de força perante o Governo e a Inspecção de Trabalho e em defesa da proposta que avançámos, de modo a acabar com as injustiças entre a classe. A ideia, avançada num documento e em diversas reuniões efectuadas com representantes do Governo, da ANESUL – a associação dos agentes de navegação – e com o delegado da Inspecção de Trabalho, era tomar medidas que permitissem trabalho a todos os estivadores. Ou seja, uma garantia de regularidade de trabalho e de salário, pois acontecia que os estivadores eram trabalhadores eventuais. A vida ali dera muito dura, pois eram os chefes quem escolhia todos os dias o pessoal que queriam para trabalhar.
Até essa data, o porto parecia um mercado de escravos. Chegávamos de manhã, sentávamo-nos e eles andavam à nossa volta para escolher quem ia trabalhar nesse dia. Depois de muitos anos nisto, organizámo-nos e fizemos impor a nossa vontade de justiça. Criámos uma escala de serviço rotativa, de maneira a que toda a gente tivesse trabalho. Depois veio a proposta de socialização que, para além da regularidade de trabalho, pretendia também garantir salários às pessoas. Arranjámos uma maneira de o fazer, propondo uma compensação financeira aos trabalhadores caso os 20 dias normais de trabalho não abrangessem o ordenado estipulado. Isto compensava os dias em que o pessoal estava no porto e não era contratado, pois era uma injustiça as pessoas irem todos os dias para a estiva e não arranjarem trabalho.
SR – Tiveram dificuldades em fazer passar a vossa proposta?
MJA – Não tivemos grandes dificuldades, a não ser as mudanças de Governo que foram atrasando as coisas. A proposta foi feita ainda durante o IV Governo provisório, mas só no VI Governo provisório é que conseguimos ver resultados graças ao aumento da pressão dos estivadores unidos no Sindicato. Os estivadores tinham muitíssima força em Setúbal e quando levantávamos a voz as coisas encarrilavam. Éramos à volta de 200 e sem nós a economia da região paralisava por completo, pois dos estivadores dependia tudo o que era empresa, desde a Portucel, à Secil, passando pela Setenave que precisavam dos carregamentos que vinham por mar.
Uma outra reivindicação era a criação de uma comissão tripartida para o sector, os chamados centros coordenadores do trabalho portuário que, aliás, os outros portos do país já tinham. O objectivo era criar um grupo para centrar a definição das operações e gerir a mão de obra existente, de uma forma mais justa. Por isso, desse Centro Coordenador faria parte um representante dos trabalhadores, que vim a ser eu, da entidade patronal e do Governo. Mas só o conseguimos em 1981. Enquanto isso, o pessoal dos outros portos já há anos que tinha ordenado certo, direito a férias, a subsídio de férias e roupas de trabalho.
SR – Com a aceitação da vossa proposta, o que é que mudou na vida dos estivadores?
MJA – Foi uma mudança radical, pois passámos a ter mais garantias, quer de trabalho quer de ordenado mais ou menos certo. As pessoas passaram a ter mais estabilidade económica e até emocional, pois deixaram de ter tanto medo de abrir a boca em protesto correndo o risco de serem riscadas das listas para a estiva. Ainda me recordo de que esta medida veio provocar alguma confusão no início pois, sendo o Sindicato representante também dos barqueiros – que andavam embarcados nos navios e nas fragatas – tivemos de chamar esse pessoal todo à medida que ia chegando a Setúbal e dar-lhes a conhecer a situação.
Explicávamos o que se passava e fazíamos a proposta: ou eles ficavam cá e eram abrangidos pelas novas medidas ou voltavam a embarcar e não as tinham. Muitos optaram por largar os barcos e ficar na estiva – e fizeram muito bem, pois a profissão era agora mais segura – mas outros preferiram voltar a embarcar. A partir daí, a chamada ‘malta da rua’ – os que não tinham cartão de estivador e que iam para lá com a intenção de arranjar trabalho sempre que houvesse uma vaga – começou também as beneficiar com as regalias que o Sindicato conquistou. Decidimos chamar mais de cinquenta, que tinham dado provas de assiduidade, cada um deles ficou com o cartão de estivador – o que na altura era considerado uma enorme garantia – e assim acabámos com as injustiças que vinham ocorrendo há muitos anos.
SR – Como é que as entidades patronais encararam esta mudança?
MJA – Tiveram de encarar bem, pois não tinham outro remédio. É preciso ver que com os estivadores ninguém se metia, pois nós tínhamos imensa força. Lembro-me inclusivamente de que chegámos a multar as empresas e que esse dinheiro ia para o nosso chamado ‘saco azul’ que servia para investir no próprio Sindicato. E os patrões pagavam essas multas sem abrir a boca. As multas, que muitas vezes chegavam aos dois mil contos, diziam respeito a descarregamentos feitos sem o nosso conhecimento, geralmente de noite. A coisa era de tal forma que, com essas multas comprámos a nossa sede. Éramos tão organizados que cada trabalhador descontava 200 escudos por mês para o chamado ‘fundo de greve’ que servia para pagar os ordenados ao pessoal sempre que paralisávamos.
SR – Como é que conseguiram ter força suficiente para negociar com as entidades patronais?
MJA – Na origem de tudo esteve a nossa revolta face às injustiças dos chefes, que escolhiam os que mais gostavam para trabalhar com eles e, normalmente eram sempre os mesmos. Aquilo funcionava por clãs, e só trabalhava quem os chefes queriam. E os que conseguiam ser escolhidos faziam tudo o que os chefes queriam, não davam opinião nem levantavam ondas. O resto ficava a ver navios durante dias a fio e, por vezes, o pessoal desistia pois nunca mais era chamado para trabalhar.
Para explicar a miséria e injustiça que se vivia entre a classe, a única comparação que me ocorre é com o filme ‘Há Lodo no Cais’, que conta exactamente como as coisas se passavam nos anos 30 entre os estivadores americanos. O mais triste é que, nos anos 70, era exactamente aquilo que se passava no porto de Setúbal.
Com a nova geração de estivadores, entrada nos anos 60, entre os quais estava eu e os outros 13 colegas que depois do 25 de Abril ocuparam o sindicato, as coisas começaram a mudar pois nós tínhamos uma visão crítica das coisas e sentíamo-nos muito revoltados com o que víamos. Lembro-me muito bem de que, nos anos 60, os estivadores eram autênticos escravos e que pouco tinha mudado ao longo dos séculos. Pouca gente sabe, mas a profissão de estivador é descendente do trabalho que os escravos africanos eram obrigados a fazer nos portos, ou seja, descarregar os navios que vinham de todo o mundo com mercadorias. Por isso, ainda hoje nós temos uma linguagem própria que ninguém percebe senão nós.
À semelhança dos tendeiros e dos presos, os estivadores têm uma linguagem característica que veio do fundo dos tempos, da altura em que os escravos tinham de falar em código para que os brancos não percebessem. Essa linguagem, agora em risco de desaparecer pois tem vindo a entrar em desuso, era utilizada diariamente por nós para trocarmos as voltas aos chefes e aos ‘casacas’.
Quase como os escravos de há centenas de anos, nós não tínhamos direitos nem quaisquer garantias de trabalho. Éramos contratados ao dia e nem sequer havia qualquer medida de segurança numa profissão tão perigosa como esta. Por isso, infelizmente, vi alguns morrerem em acidentes de trabalho perfeitamente evitáveis. Dessa época, o que me vem à memória são imagens de homens de grande força física, descalços – pois a pobreza era tanta que não havia dinheiro para comer, quanto mais para sapatos – com sacas e tudo o que é carga às costas, num esforço braçal enorme.
Isto passou-se também durante os anos 70, pois embora as nossas condições tenham melhorado consideravelmente, o trabalho braçal não mudou pois o porto de Setúbal levou muitos anos para substituir a força bruta pelas novas tecnologias. Enquanto aqui, nem sequer sabíamos o que era uma empilhadora e continuávamos a ser vistos pela sociedade como broncos, brutos e analfabetos, em portos como os da Alemanha a estiva era quase tudo mecanizado e os estivadores eram tidos como uma classe respeitada.
SR – Foi fácil mobilizar os companheiros de trabalho para a vossa luta?
MJA – Não foi fácil porque muitos deles – e com razão – receavam ir às reuniões do Sindicato com medo de represálias e de não conseguirem trabalho no dia seguinte. Era assim que as coisas funcionavam no porto de Setúbal porque os chefes, a quem chamávamos ‘casacas’, eram bem capazes de riscar os nomes das listas e de não dar trabalho ao pessoal. Mas, correndo esse risco, nós insistimos e fomos buscá-los. E mesmo em pleno período revolucionário, onde as coisas eram mais facilitadas aos trabalhadores, na estiva continuavam a dar-se represálias por razões políticas ou laborais.
Lembro-me de ter andado vezes sem conta pelos cais a convencer o pessoal a ir às reuniões pois era para o nosso bem. Depois chamámos o pessoal da rua que fazia o trabalho eventual, muitos deles estudantes do ensino superior que faziam ali uns biscates durante as férias, pois ganhavam mais que noutro lugar qualquer. Este pessoal foi muito importante para nós, pois como eram pessoas mais cultas deram-nos uma grande ajuda na luta pelos nossos direitos. Ainda hoje encontro alguns deles, agora médicos e advogados que se lembram daquela época. Tendo em conta o estado a que as coisas chegaram, a nossa revolta era inevitável. Por isso é que as entidades patronais não abriram a boca.
SR – Os trabalhadores conseguiram conservar, até hoje, os direitos conquistados durante o PREC?
MJA – Até me arrepio só de pensar nisso, pois graças a uma portaria saída em 1993, a maior parte de nós veio embora depois de complicadas negociações com as entidades patronais. Essa portaria, que acabou por pôr na rua o pessoal reivindicativo, levou a que ficassem lá apenas 20 homens do nosso tempo e esses estão na maior. São aqueles a quem nós demos o cartão de estivador e é a nós que eles devem tudo. Contudo, a maioria nem sequer nos fala. Trabalham pouco, desempenham funções leves e ganham fortunas por mês.
Essa portaria levou à aplicação do princípio da polivalência na função e abriu novamente portas ao trabalho eventual. Agora já não existem estivadores nem conferentes, são todos trabalhadores portuários e têm que fazer tudo. Agora existem empresas para contratar trabalhadores eventuais, como a Operestiva, as entidades patronais são contra a atribuição de carteiras profissionais para evitar dar força aos trabalhadores e, infelizmente, tudo voltou ao que era antes do 25 de Abril.
SR – Está desiludido com o rumo dos acontecimentos?
MJA – Estou muitíssimo desiludido e triste pelo que aconteceu nos últimos anos. De tal maneira que nunca mais pus os pés na estiva. Demos tantos anos das nossas vidas por aquilo em que acreditávamos, demos noites a fio sem dormir, depois de um dia de trabalho estafante porque sabíamos que tínhamos de dignificar a nossa profissão e conseguir para todos os estivadores os direitos que mereciam. Todo esse trabalho foi por água abaixo e, tal como aos outros companheiros de luta, o que me restou foi um enorme vazio e as represálias que durante anos sofri.
É triste lembrar dos sacrifícios que fizemos, do que o Sindicato lutou e dos inimigos que criámos para defender a profissão. É triste lembrar que muitos dos meus companheiros, depois de terem saído da estiva, em 1993, tentaram, sem sucesso, voltar para lá. E não conseguiram porque a ordem das empresas era não dar trabalho ao grupo que tinha saído porque era gente reivindicativa e exigente. E, com muita tristeza, descobrimos que muitas vezes essas ordens vieram dos homens que lá metemos e a quem nós demos o cartão de profissional.
Infelizmente, o porto de Setúbal voltou àquilo que era antes de 1974, com uma actividade dominada pelos grupos de ‘casacas’ e por autênticos clãs, constituídos por pais, filhos, genros e netos que se acham no direito de decidir pelos outros.
SR – Está arrependido das acções que ajudou a desencadear durante o período revolucionário?
MJA – Apesar de desiludido por ter visto tudo ir por água abaixo, nunca me arrependerei de ter reivindicado aquilo a que tínhamos direito. E embora admita que possamos ter cometido alguns excessos, pois o conhecimento sobre estas questões era muito pouco, continuo a achar que o que fizemos foi bem feito e que voltaria a fazê-lo da mesma forma.
E até acho que, se calhar, o estado em que se encontra o porto de Setúbal merecia um levantamento do pessoal. Actualmente as pessoas não têm quaisquer direitos, são contratadas quando calha, não têm subsídio de férias e, graças a isso, não sabem o que os espera no dia de amanhã. Voltou a escravidão, o trabalho precário, um enorme sentimento de insegurança e a falta de perspectivas de futuro.