[ Dia 08-03-2001 ] – Mulheres continuam vítimas silenciosas de maus tratos.

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Mulheres continuam vítimas silenciosas
de maus tratos

Neste Dia Internacional da Mulher, as contas da delegação de Setúbal da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), desde o início de 2001, indicam não ter havido registos de qualquer denúncia pública de violência contra mulheres. Isto apesar da configuração da violência doméstica como crime público. Um indicador que, de acordo com os especialistas estará longe da realidade, uma  vez que o que está em causa é a inibição das vítimas para o acto da queixa contra os agressores.

No ano passado, o gabinete de Setúbal da APAV recebeu um total de 201 processos. Neste distrito, como em todo o país, as mulheres continuam a ser a vítima preferencial nos casos de violência doméstica, apesar da nova legislação que configurou estas situações como crime público – 94,8% dos casos registados no ano passado pela APAV, a nível nacional, são agressões a mulheres.

Na base desta preponderância estão razões biológicas e culturais. Conceição Pereira, delegada do gabinete de Setúbal da APAV e professora universitária de Antropologia, refere que “a cultura judaico-cristã define a mulher como um objecto para cuidar e que, por isso, se torna mais vulnerável a agressões”. O estatuto atribuído implica, em muitos casos, uma dependência económica e social que impede as vítimas de se libertarem do ciclo de agressão física, psicológica e sexual.

O padrão da vítima de violência doméstica é a mulher com baixa auto-estima, que se considera a causa dos maus tratos porque já passou por situações idênticas, dependente economicamente do companheiro e isolada dos contactos sociais – há mulheres que ficam fechadas em casa devido ao ciúme patológico do companheiro. Nos estratos sócio-culturais mais elevados, a agressão tende a ser psicológica, como a ameaça da perda dos filhos, e o pudor social é o principal travão à denúncia dos casos de agressão.

No ano passado, a violência doméstica foi configurada como um novo tipo de crime público, permitindo que qualquer entidade actue, mas os técnicos da APAV verificam que, na prática, continua a ser um crime privado. Helena Ribeiro, advogada do gabinete de Setúbal, refere que, por vezes, “são as próprias vítimas que negam a entrada das autoridades ao domicílio, coagidas pelo agressor a dizer que não existem problemas”.

É um problema cultural, adianta esta responsável ao adiantar que o ditado ‘entre marido e mulher, ninguém mete a colher’ continua a prevalecer. Por outro lado, acrescenta que se não há denúncias de terceiros “é porque os vizinhos não se querem meter em problemas”.  O Ministério Público continua a não aplicar medidas de coacção como o afastamento do agressor para a autonomia da vítima, que a nova lei estendeu às uniões de facto, apesar do Procurador-Geral da República ter deferido uma queixa da Comissão de Protecção dos Direitos da Mulher instruindo o Ministério Público a aplicar esta medida.

Por outro lado, as acções judiciais esbarram nos pedidos de suspensão do processo pela própria vítima, por pressão ou promessas do agressor. “Há casos em que, quando a polícia intervém, é a própria vítima a defender o agressor, por vezes com violência”, refere Helena Ribeiro.

A falta de instrumentos de apoio à autonomia da vítima é outro obstáculo ao sucesso dos processos da APAV. A maior parte das mulheres não tem capacidades financeiras para sair de casa e o Ministério Público continua a não aplica medidas de coacção que afastem o agressor e permitam à vítima regressar a casa.

Existem poucos lares específicos para as mulheres vítimas de maus tratos e todos estão superlotados. Os apoios financeiros através do Rendimento Mínimo Garantido, abonos e pensões demoram muito tempo e, no casos de uniões de facto, não existem as garantias dadas por um processo de divórcio, pelo que as vítimas têm de esperar pela indemnização de um processo crime. “Apesar das dificuldades, temos conseguido relocalizar algumas vítimas, com o apoio de outras instituições de solidariedade social”, adianta Conceição Pereira.

O gabinete de Setúbal, em funcionamento há quatro anos, subsiste com escassos apoios institucionais – a Junta de Freguesia de S. Julião e a Câmara Municipal do Seixal são os únicos sócio colectivos da APAV no distrito – e continua sem instalações próprias, apesar de ter conseguido um espaço de atendimento no Tribunal de Família e Menores. “Como não há espaço próprio, estamos limitados pelo horário de funcionamento do tribunal”. Por outro lado, o facto daquele ser um espaço público, “inibe muitas das vítimas a consultarem-nos”, aponta Conceição Pereira.