Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 7 de Março de 1976?
Dimas Pereira – Estava no pavilhão do Clube Naval Setubalense, onde decorria uma iniciativa popular de apoio à Reforma Agrária e contra a escalada da direita. Foi uma jornada de luta com a participação de milhares de pessoas e o pavilhão do Naval encheu como há já algum tempo não acontecia. Eu estava na mesa que presidia ao acontecimento em representação do Círculo Cultural de Setúbal – uma das entidades organizadoras – mas não discursei pois o que estava previsto era dar o meu contributo musical para a iniciativa.
Aquela jornada de luta foi realizada precisamente um ano depois dos trágicos acontecimentos de 7 de Março de 1975 que culminaram na morte de um jovem revolucionário durante uma manifestação de protesto contra o comício do PPD que ali se realizava. Portanto, a jornada de luta de 7 de Março de 1976 foi uma homenagem a João Manuel e uma resposta clara de Setúbal às tentativas do PPD, de minar a revolução. E como um dos alvos da direita era a reforma agrária que, já naquela altura, estava em risco de desaparecer devido ao início do processo de devolução das terras aos latifundiários, lembrámo-nos de manifestar o nosso apoio público aos homens e mulheres da terra.
SR – Quem é que organizou esta jornada de luta?
DP – Esta acção partiu de elementos do Círculo Cultural de Setúbal – que sempre foi muito activo em termos de intervenção cultural e social – em conjunto com as comissões de moradores e comissões de trabalhadores do concelho. Setúbal estava muito ligada à Reforma Agrária e empenhadas no seu sucesso. De tal maneira que alguns dos membros do Círculo Cultural, em conjunto com as comissões de moradores e de trabalhadores, vinham participando na chamada ligação cidade-campo, que consistia na promoção do transporte e venda dos produtos agrícolas na cidade para ajudar os agricultores a escoarem os seus produtos mais facilmente e sem intermediários.
E a prova de que Setúbal era uma cidade atenta e crítica nestas questões foi o sucesso da jornada de luta ocorrida no Naval que encheu por completo o pavilhão. Estiveram lá milhares de pessoas, desde operários a camponeses de todo o distrito e também do Alentejo, para mostrarem que o povo não estava disposto a permitir a destruição das conquistas da revolução. Lembro-me bem de que aquilo começou a meio da tarde e foi-se prolongado até à noite, com dezenas de intervenções musicais. Eu estive no palco com o meu acordeão, ao lado de nomes como Pedro Barroso, José Afonso, Francisco Fanhais, o Grupo Coral de Ferreira do Alentejo e o Grupo Coral dos Mineiros de Aljustrel. Recordo-me de que o pavilhão do Naval quase foi abaixo com as intervenções populares e as palavras de ordem “Não ao fascismo, não ao capitalismo”.
As pessoas tinham plena consciência de que Portugal estava a mudar à direita, o que, aliás, ocorria com maior intensidade desde o 25 de Novembro de 1975, e não queriam que isso acontecesse pois significaria perder os valores de Abril. Então quando Francisco Fanhais e José Afonso subiram ao palco com as suas canções de intervenção, o Naval quase que foi abaixo com tanto aplauso. Aquela jornada foi um sucesso impressionante, quer ao nível da demonstração de força do povo de Setúbal quer no que diz respeito ao apoio concreto à própria Reforma Agrária pois, do que me lembro, a receita terá revertido a favor das cooperativas agrícolas.
Foi uma acção de intervenção basicamente musical, com artistas de intervenção, pois os discursos foram poucos e logo no início da sessão. Lembro-me de alguns discursos, entre os quais o de José Pina, em nome do Círculo Cultural de Setúbal, e de discursos dos representantes das comissões de trabalhadores e de moradores. A preocupação era a mesma, nestes discursos, pois as pessoas estavam verdadeiramente preocupadas com o desaparecimento de algumas conquistas efectuadas ao longo de 1975.
Não foi apenas a Reforma Agrária, nomeadamente as cooperativas agrícolas, que sofreu reveses com a devolução de terras aos latifundiários, pois a luta das rendas de casa estava também em risco com os despejos que vinham ocorrendo ao longo dos últimos meses. Naquela altura muita gente que tinha lutado nas ocupações de casas e por rendas mais justas, começou a ver uma onda de despejos das famílias entretanto alojadas e que estavam em risco de voltar às barracas. O que veio mesmo a verificar-se pois muitas famílias não tinham capacidade financeira para pagar as rendas estipuladas.
SR – Ficou surpreendido com o grau de participação da população de Setúbal à jornada de luta?
DP – De facto foi uma enchente fora do comum. Mas não fiquei surpreendido porque sabia que o povo de Setúbal era assim: combativo e revolucionário. As pessoas saíam à rua sempre que era preciso defender os ideais revolucionários, por isso foi natural a reacção em massa contra o que se vinha verificando, que era a infiltração de elementos da direita, particularmente do PPD, em instituições e órgãos do poder a nível regional e nacional. Claro está que a reacção de Setúbal só podia ter sido esta, pois este povo tem história de combatividade e de convicções.
Não podemos esquecer que desde tempos imemoriais, o povo de Setúbal esteve ligado a revoluções e mudanças sociais. E uma das razões que estava por trás disso, mais do que o grau de politização das pessoas, era o facto desta terra ser composta por operários e pescadores e, mais tarde, também por muita gente do Alentejo que para aqui veio trabalhar na indústria naval e automóvel. Era gente de trabalho que sofria na pele a exploração e que, de modo natural, reagia às injustiças com uma enorme combatividade e inconformismo.
SR – Como é que outros sectores da sociedade, nomeadamente os sectores de direita, reagiram a esta jornada de luta?
DP – Não me lembro de qualquer reacção negativa à jornada de luta, nem mesmo por parte daqueles que ali condenávamos. Mas também, com uma demonstração de força como aquela, duvido que alguém de direita tivesse tido coragem de se pronunciar contra ou criticar a acção nos dias que se seguiram. No entanto, parece-me que a Câmara não apoiou a iniciativa. Não percebi bem porquê, até porque estava a ser liderada por uma Comissão Administrativa maioritariamente comunista que apoiava e promovia a Reforma Agrária.
SR – 25 anos depois, como é que vê Setúbal?
DP – Não tem qualquer comparação com a cidade de 1976, particularmente no que diz respeito às pessoas. Setúbal eram muito combativa, com um grande sentido de justiça e capacidade para sair à rua em defesa daquilo em que acreditava. As pessoas mobilizavam-se com muita facilidade e todos ajudavam todos. Hoje em dia, as coisas são exactamente ao contrário. É já pouco o espírito de ajuda, cada um preocupa-se apenas com o seu próprio mundo e está-se borrifando para o colectivo. O Círculo Cultural de Setúbal é o exemplo disso pois tendo sido sempre, e assumidamente, anti-fascista, estava em todas as iniciativas.
E lembro-me muito bem, porque também lá dei aulas, de termos criado turmas para dezenas de pessoas ali fazerem os seus cursos. Muitos de nós demos aulas à noite e neste grupo estava integrado Zeca Afonso que durante muito tempo deu aulas de Filosofia a adultos que queriam terminar o ensino secundário. Foi também do Círculo que saíram muitos dos dirigentes políticos de câmaras e juntas de freguesia após as primeiras eleições autárquicas, o que atesta a nossa capacidade de intervir cultural e socialmente na região.
Agora tudo é diferente e os problemas por que o Círculo agora passa são prova disso. Ficámos sem sede, foi-nos dado um armazém sem quaisquer condições e graças a isso não conseguimos desenvolver as actividades que sempre tivemos. Mas isso também se deve um pouco à falta de intervenção das pessoas, pois muitos dos sócios desmotivaram-se. Isto mostra como Setúbal está diferente e como as pessoas estão agora como que reféns das exigências do capitalismo.
SR – Está desiludido com o rumo dos acontecimentos?
DP – Sem qualquer dúvida, embora tenha consciência de que vai uma grande distância entre aquilo que a gente sonha e o que depois vem a ser a realidade nua e crua. Contudo não desanimo em relação a isso, pois como todos sabemos a História é cíclica. Posso até nem conseguir ver as mudanças, pois com 79 anos já pouco tempo me resta, mas acredita plenamente que as mudanças vão dar-se em Portugal. As pessoas têm limites e já há muito tempo que muita gente deixou de poder aguentar este estado de coisas, esta injustiça e esta exploração de cada um de nós.