[ Dia 02-04-2001 ] – Eleições legislativas.

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Setúbal na RedeOnde é que estava no dia 3 de Abril de 1976?

Eduardo Pires – Nessa altura deveria estar a viver em Coina ou na Baixa da Banheira e fazia parte da Comissão Política do Conselho Nacional da UDP. No dia 3 de Abril iniciou-se a campanha eleitoral para a Assembleia da República e tinha sido

escolhido para integrar o grupo de candidatos pelo distrito de Setúbal, como cabeça de lista. Estava tudo pronto para arrancar com a campanha pois a decisão de concorrermos tinha já sido tomada, tendo as listas sido preparadas numa reunião do partido – PCP/R  –

uma vez que a UDP era uma frente do partido, de outros grupos à esquerda do PCP e também de pessoas sem partido que se identificavam connosco. Portanto, quando a UDP realizou o seu segundo congresso, em Fevereiro, estava quase tudo definido quanto às eleições.

Foi um congresso memorável, com o Coliseu a abarrotar de delegados e assistentes.

Foi aí que a OCMLP de Paulo Martins –que ainda hoje é deputado na Madeira -adereà UDP, e que o padre Max subiu à tribuna para denunciar os poderosos, fazendo uma dissertação sobre o trabalho enquanto padre e apoiante da luta sindical e da luta dos camponeses pelos seus direitos. E foi aí que ele proferiu uma frase que ficou célebre e que ainda hoje é recordada: “é mais fácil um elefante passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”.

Na altura, e tendo em conta a situação que o país vivia, esta frase teve um significado quase revolucionário. Indicava que um padre tomava uma posição antagónica à da Igreja – que geralmente está com o poder – e isto numa terra onde o comunismo ainda era o bicho papão. Foi por se ter empenhado nos direitos  dos desfavorecidos que ele se identificou com a UDP, pelo que, no congresso de Fevereiro o padre Max apresentou-se como candidato às eleições legislativas. Foi decidido colocá-lo como cabeça de lista em Vila Real. Isso foi como que uma afronta ao poder instituído e à própria Igreja que, como se sabe, tinha um enorme poder no norte do país.

SRTendo em conta a agitação provocada pela aprovação da Constituição, no dia 2, e a polémica em volta da notícia do assassinato do padre Max, no dia seguinte, em que clima decorreu a campanha eleitoral no distrito?

EP – Lembro-me bem de que a Constituição foi aprovada por maioria, tendo sido o CDS o único partido a votar contra. Recordo-me de termos estado em reuniões e discussões na direcção do partido até às quatro da manhã de dia dois para definirmos o voto do nosso deputado. Estávamos muito indecisos mas acabámos por decidir que o nosso deputado, Afonso Dias, – que pertencia ao Comité Regional de Setúbal do PCP/R – iria aprovar a Constituição. Quase de imediato começou a campanha eleitoral para as eleições de 25 de Abril, tendo nós apresentado listas em todos os distritos.

Nesse primeiro dia de campanha surgiu a notícia do assassinato do padre Max, o que chocou não só a UDP como todo o país. A sua morte só pode ser entendida se tivermos como referência o 25 de Novembro de 1975 e a situação económica e política nacional e internacional. Antes de 1974, e no contexto mundial, Portugal representava o último elo do colonialismo europeu e era ,de facto, um elo muito fraco dessa cadeia imperialista.

A situação interna era de uma brutal contradição entre a classe operária, a pequena burguesia, o latifúndio e o grande monopólio.

Essa contradição brutal, somada ao elo fraco do colonialismo, rompeu da pior forma possível para a burguesia europeia com o povo a levantar-se em armas contra o regime fascista português, libertando uma energia acumulada durante séculos e super cumulada durante os quase 50 anos de ditadura. Essa ruptura pôs em causa  toda a burguesia, uma vez que a ideia que surgiu foi de que íamos ter uma Cuba na Europa. Esse receio internacional teve uma grande influência no rumo dos acontecimentos em Portugal pois foi feito de tudo para que este movimento revolucionário soçobrasse.

Começou o cerco económico e o apoio financeiro aos principais partidos que estariam contra o processo revolucionário. De um lado tínhamos o movimento operário e do campesinato que fez uma enorme força em defesa dos seus direitos e pela aprovação da Constituição que os consagrava, e do outro tínhamos os partidos de direita reforçados e organizados para pressionarem o contrário. Essa pressão vinha particularmente de organizações como o ELP, organizado por António Spínola após o 12 de Setembro e em que a Lisnave teve um papel fundamental na desmontagem do projecto da maioria silenciosa. Para além do ELP que teve no cónego Melo uma personagem fundamental, havia o MDLP, a organização política clandestina dirigida por Alpoím Galvão que sustentava esse Exército de Libertação de Portugal.

Veio o 28 de Setembro com a consequente reacção popular e, logo a seguir, numa altura em que as forças do povo estavam a esvair-se de tanta luta contra adversidades  de todo o tipo, deu-se o golpe militar de 25 de Novembro fruto do trabalho intenso das burguesias europeias  e americana em confronto com os soviéticos que tinham apoio em Portugal, nomeadamente do PCP, que com este golpe escalpou de ser ilegalizado mas acabou por ser neutralizado e perder capacidade de intervenção. Daí que, depois disso, a capacidade reivindicativa e de luta se tenha ficado pelos pequenos partidos à esquerda do Partido Comunista. De certa forma, e por ser um partido mais amplo, foi o PS que encabeçou a luta para o 25 de Novembro com o apoio do PPD e do CDS.

As eleições legislativas de 1976 surgem numa altura em que temos, de um lado um bloco central com o PS, o PPD e o CDS que, de certa forma, representam os vitoriosos  – com o ELP e o MDLP por trás a fazer pressão e a reivindicar o êxito do 25 de Novembro, sendo Jaime Neves o representantes desse êxito  – e do outro lado tínhamos os pequenos partidos à esquerda do PCP com a luta dos trabalhadores e do campesinato.

É neste contexto que o ELP e o MDLP têm uma grande base de intervenção, particularmente no norte do país, fazendo das listas candidatas uma batalha política.

As eleições de 1976 eram para eles determinantes porque iriam servir para legitimar o poder saído do golpe de 25 de Novembro. Por isso foram tão extraordinárias na luta política para definir quem eram os deputados. Nesse campo, a UDP dá o máximo de si e ao apresentar um padre como cabeça de lista em Vila Real cria um desafio dos mais desaforados à extrema direita deste país.

Isso levou a condenações em gabinetes obscuros – com reuniões do ELP e do MDLP com o cónego Melo e Alpoím Galvão – onde eles acabaram por decidir liquidar o padre Max num atentado à bomba.  Aí, o padre Max passa a ser o símbolo da luta popular. Durante toda a campanha o assunto foi abordado e nunca deixámos esquecer a questão.

SR – Como é que decorreu a campanha eleitoral no distrito?

EP – Foi uma campanha muito intensa e os trabalhos tiveram um impacto de tal ordem que, após as eleições, na hora do balanço fomos tidos como exemplo a nível nacional.

A nossa campanha contou muito com os trabalhadores das principais fábricas, como foi o caso da Setenave, da Lisnave, da Siderurgia, das grandes empresas de construção civil e da Timex, para além de forças populares de grande prestígio. Então fizemos uma campanha nesta base, com colagem de cartazes, visitas a locais de trabalho e uma enorme marcha a pé com largas centenas de operários de todo o distrito, que começou em Cacilhas e acabou no Largo de Bocage, em Setúbal. Quanto terminámos, a manifestação já tinha mais de três mil pessoas.

Demorámos dois dias nesta marcha que chegou a Setúbal no último dia de campanha. Foi com ela que encerrámos a campanha eleitoral, bem no meio da cidade de Setúbal.

Lembro-me de que foi uma marcha monumental com todas aquelas centenas de pessoas a pé e que faziam questão de entrar nas fábricas que encontrávamos pelo caminho. Enquanto isso, Fernando Pé Curto – um conhecido pintor da região – ia fazendo pinturas murais ao longo de todo o trajecto. Foi uma campanha extraordinária e, com a força e organização que tivemos, o partido ficou bastante prestigiado.

SRA força dessa manifestação revelou o peso da UDP ou o peso dos partidos de extrema esquerda no distrito?

EP – Penso que foi o peso da UDP que se revelo fundamental para o país e que teve uma enorme expressão na região pois tratou-se da congregação de pequenos partidos e movimentos à esquerda do PCP que, efectivamente, no distrito de Setúbal tinham peso.

O MRPP tinha, de facto, algum peso, mas não desempenhava um grande papel junto das comissões de trabalhadores, contrariamente ao que acontecia com a UDP. Por seu lado, a LCI, que era uma organização trotskista, não tinha muita capacidade de intervenção naquela época. No distrito, quem tinha mesmo influência era o PCP, o PS, o PPD e a UDP. De referir que nós estávamos à frente do CDS e isso ficou provado nestas eleições.

SRNum clima de tensão como aquele que se viveu nas eleições de Abril de 1976, pode dizer-se que  a campanha foi tudo menos pacífica?

EP – Foi bastante complicada porque ocorreram vários confrontos, nomeadamente durante as colagens de cartazes. E os confrontos físicos ocorriam com frequência quer com o CDS quer com o PCP, por causa dos cartazes. Lembro-me de termos chegado várias vezes a vias de facto, nomeadamente no Lavradio, quando alguns membros de partidos de direita destruíram um enorme pote de barro junto à estação dos comboios que continha inscrições sobre António Spínola. Nós lembrámo-nos de fazer uma pintura frente das casas deles, pois era um bairro de engenheiros e doutores, e o que aconteceu foi que chegaram mesmo a ameaças de caçadeiras e confronto a sério entre gente da UDP e forças de direita.

SRQuais eram os adversários mais directos da UDP, nestas eleições?

EP – Definitivamente, o nosso grande adversário era o fascismo. Por isso lutávamos directamente contra os partidos à direita do PS, incluindo este pois, de certa forma, representava a recuperação da burguesia. No que diz respeito ao PCP, a nossa crítica foi sempre feita na base de que ele não era consequente na luta que travava.

SRO PS acabou por ganhar as eleições de Abril de 1976. Esse resultado desiludiu a UDP?

EP – No distrito de Setúbal tivemos uma votação enorme que resultou directamente do nosso trabalho na região. E por isso, os resultados subiram em flecha, relativamente às eleições para a Constituinte, no ano anterior. Nestas eleições nós tivemos 2,8 % dos votos, contra 1,3 obtidos no ano anterior. E isso veio a reflectir-se nas eleições presidenciais desse mesmo ano, com o PCP – que tinha uma aliança tácita com o poder – a apresentar o candidato Octávio Pato mas a tudo fazer para apoiar Ramalho Eanes que veio a tornar-se Presidente da República. Nós apoiámos Otelo Saraiva de Carvalho e o resultado do nosso trabalho e da credibilidade que Otelo tinha junto do povo, foi que ele quase ganhava as presidenciais. Só no distrito, ele teve mais de 40% dos votos.

Mas não posso dizer que fiquei surpreendido com os resultados finais das legislativas, pois o que aconteceu foi o resultado do contexto em que se vivia. Ou seja, com a direita a organizar-se e a retirar, por todos os meios, a força ao movimento popular, com o PCP desmantelado e os trabalhadores a não encontrarem um grande partido que os apoiasse, as pessoas começaram a ver as forças esvair-se e os votos dispersaram-se.

SR25 anos depois, valeu a pena o esforço que fez?

EP – Não tenho a mínima dúvida de que foi um esforço por aquilo em que acreditava e em que ainda acredito pois continuo a defender os mesmos ideais. Se fosse possível voltar a fazer o que fiz, acredito que o faria com a mesma força e convicção, embora admita que pudesse não cometer os erros que cometi, fruto da época conturbada em que todos vivíamos.