Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 10 de Abril de 1976?
Fernando Cardoso Ferreira – Estava em Setúbal, num comício do PPD que, aliás, foi o primeiro a ocorrer depois do comício de 7 de Março de 1975. Estava lá, como militante e como número dois da lista de candidatos por Setúbal, liderada por Rui Machete, às eleições legislativas. Não me recordo com nitidez da forma como decorreu o comício de 10 de Abril, pois naquele período eram imensas as acções que desenvolvíamos por todo o distrito, contudo acredito que tenha sido tudo menos pacífico. Até praticamente 1980, nenhuma actividade política do PPD, no distrito de Setúbal, correu pacificamente.
Curiosamente, o que corria sem muitos problemas eram as acções de pequena envergadura. Lembro-me de, em determinadas alturas, ter ido fazer sessões de esclarecimento sozinho sem problemas. Isso aconteceu, por exemplo, em Alvalade Sado e não tive qualquer dificuldade. Entrei na sala, acendi as luzes, havia pouca gente na sessão e ninguém me hostilizou. Contudo, as coisas chegavam a ser violentas em actividades mais expressivas que tivessem um significado público. Aí sim, as coisas complicavam-se. Lembro-me de que chegaram a dar-se verdadeiras batalhas campais de cada vez que nós tentávamos afixar propaganda.
SR – Durante a campanha, os dirigentes do PPD sentiram-se ameaçados?
FCF – Naquela altura e num distrito como o de Setúbal, ser-se assumidamente do PPD e lutar pelos nossos ideais eram actos de autêntica resistência . Com o PCP por trás, a extrema-esquerda teve um papel muito grande nesses conflitos, como foi o caso da LUAR, do PRP/BR, da LCI, da UDP e do MRPP. Eram muitas as organizações de extrema-esquerda que por aqui proliferavam e que habitualmente, nas ruas, nos criavam problemas e enormes dificuldades chegando mesmo ao confronto físico. Impediam-nos de colar cartazes, destruíam-nos todo o material e agrediam-nos fisicamente.
FCF – Naquela altura, o PCP tinha quem lhe fizesse o trabalho sujo. Tinha um papel preponderante na sociedade portuguesa e uma influência muito grande mas isso não correspondia, nem nunca correspondeu, ao seu peso eleitoral em termos reais. E estas organizações de extrema-esquerda, de alguma forma, resolviam o problema do PCP que consistia em amedrontar. É preciso dizer que aquelas acções tinham por objectivo amedrontar as pessoas e desencorajá-las de qualquer actividade à volta do PPD.
SR – Essas acções conseguiram desencorajar o PPD no distrito?
FCF – Não tiveram sucesso porque nós nunca desistimos de lutar por aquilo que defendíamos. O resultado foi mais de 8% de votação no distrito, o que significou uma subida de mais de 3% em relação às eleições de 1975 para a Constituinte.
E conseguimos eleger um deputado: Rui Machete. A partir daí fomos sempre subindo. O que fizemos foi uma actividade de autêntica resistência porque sentimos, tal como toda a gente sentiu em todo o país, que as liberdades democráticas estavam em causa.
E isso era provado diariamente ao sermos impedidos de afixar livremente a nossa propaganda e de fazermos os nossos comícios em períodos pré-eleitorais e eleitorais.
Os militantes do PPD no distrito foram fantásticos, não se amedrontaram e lutaram por considerarem que se tratava de uma questão de sobrevivência. Ou seja, se o PPD queria crescer e ter uma presença grande o que havia a fazer era resistir fisicamente.
SR – Durante a campanha, chegou a ser alvo de agressões físicas?
FCF – Não me lembro de que, quer eu quer o doutor Rui Machete, tenhamos sofrido agressões físicas. O que mais nos acontecia durante os comícios de maior envergadura, era a presença de brigadas de provocadores e as ameaças veladas para que as pessoas não participassem nas nossas iniciativas. Por vezes havia uma coacção psicológica e física quase insuportável, como foi o caso do comício no Pinhal Novo onde grupos de extrema-esquerda decidiram tirar os fusíveis e apagar as luzes do recinto. E as coisas resultaram em muita pancadaria. Era também comum esperarem pelas pessoas à entrada e à saída dos recintos onde se faziam os nossos comícios para as ameaçar. Vivemos durante muito tempo sob uma enorme coacção psicológica e física.
SR – Como é que, com as dificuldades que descreve, o PPD conseguiu aumentar a votação nas legislativas de 1976?
FCF – Penso que a figura de Sá Carneiro foi determinante. As pessoas sabiam que era o partido dele, confiavam e depositavam nele uma grande esperança. Aqui éramos autênticas tropas no terreno e, por isso, a nossa luta teve um grande significado. Esse significado acabou por se traduzir no voto secreto e fomos progredindo sempre com a figura de Sá Carneiro como referência.
SR – O que é que o PPD pretendia para Portugal?
FCF – O que pretendíamos era, acima de tudo, a normalização da vida democrática. Defendiamos o retomar da liberdade de expressão, da liberdade de reunião e o fim do Conselho da Revolução com os poderes que tinha. Uma luta difícil e que, como todos sabemos, só em 1982 é que deu frutos pois foi nesse ano que se conseguiu acabar com o Conselho da Revolução, por via da revisão constitucional.
O que, no fundo, o PPD e Sá Carneiro queriam – e acho que passaram bem essa mensagem até à trágica morte dele no atentado de Camarate – era fazer de Portugal um país democrático, com instituições democráticas que funcionassem, com o poder militar subordinado ao poder civil, com a iniciativa privada a libertar-se e a criar riqueza para transformar este país.
SR – Esses objectivos foram alcançados?
FCF – Sim, e a expressão desse resultado dá-se com a Aliança Democrática (AD) e com a vitória nas eleições em 1979 e em 1980. Portanto valeu a pena termos resistido como resistimos. E naquela época era mesmo muito difícil ser militante do PPD no distrito de Setúbal. Era preciso uma grande coragem para qualquer pessoa assumir-se como militante do PPD porque sabia que ia ser marginalizada perseguida, quer em casa quer no emprego.
No meu caso, o que mais acontecia era ser insultado nas sessões de esclarecimento que fazia pelo distrito. Contudo, nunca fui perseguido nem discriminado. Penso que isso ocorreu porque a extrema-esquerda tinha algum respeito pelo facto de eu ser uma das poucas caras visíveis do PPD e, por outro lado, por sempre me ter assumido com frontalidade. Aliás, era muito novo – tinha 28 anos – e com pouca idade as coisas são sempre mais fáceis.
SR – Qual era a verdadeira correlação de forças entre a esquerda e a direita?
FCF – No distrito, a direita era minoritaríssima e o PS era a esquerda tolerada e, diga-se em abono da verdade, mal tolerada. Tudo o que fosse à direita do PS era minoritário.
E recordo que vários partidos, como o Partido do Progresso e o Partido Liberal, foram completamente varridos do mapa. O CDS, que nessa altura vivia muito da personalidade de Freitas do Amaral, não tinha qualquer implantação no distrito. Enquanto nós conseguimos rapidamente ter uma organização territorial em cada um dos concelhos e ainda uma Comissão Política Distrital, o CDS nunca conseguiu fazê-lo. Aliás, ainda hoje não consegue ter essa organização.
SR – Quer dizer que o distrito era maioritariamente de esquerda?
FCF – Isso pode levar-nos a considerações de carácter sociológico pois nisto tudo há coisas bastante perturbadoras. Pouco tempo antes do 25 de Abril, o então presidente do Conselho de Ministros, marcelo Caetano, teve um comício extraordinário no Terreiro do Paço, com dezenas de milhares de pessoas a aplaudi-lo. É natural que, depois de uma revolução, de repente por razões emocionais e factores psicológicos muito especiais resultantes de tudo o que se viveu, que as pessoas virem à esquerda. E em Setúbal as coisas não eram diferentes.
Nas primeirs legislativas, em 1976, o resultado eleitoral ainda não foi a expressão perfeita da correlação de forças porque houve um voto útil espectacular no PS que obteve um resultado extraordinário tendo, assim, ganho as eleições. Isto porque, ainda que simpatizassem com o PPD, as pessoas achavam que o PS era o partido que melhor se opunha ao PCP e que melhor o podia arrumar no seu canto.
E viu-se que o voto de 1976 não era bem a expressão do que as pessoas queriam porque a partir de 1979 deram-se várias correcções, tendo em 1987 o professoer Cavaco Silva ganho em todo o distrito de Setúbal, à excepção de dois concelhos. Ou seja, isto das pessoas serem de esquerda ou de direita, ou de uma região maioritariamente de esquerda ou de direita é muito relactivo pois tudo depende do momento que se vive.
SR – Como é que descreve o PREC no distrito de Setúbal?
FCF – O que me marcou decisivamente foi ter chegado a 7 de Setembro de 1974 a Portugal, vindo da Guiné, onde era capitão miliciano, e pouco depois ter apanhado o 28 de Setembro, com todas aquelas barrficadas. Confesso que era como se estivesse a viver um sonho porque não era este o país que eu tinha deixado em termos de ordem, de segurança, de tranquilidade das pessoas e de normalidade d vida pública.
Quando, numa barricada, fui interceptado por um conjunto de guedelhudos militares, quase maltrapilhos, que queriam ver o carro para saber se eu tinha armas, achei aquilo de um surreralismo tão grande que vi que o país estava em perigo e que tinha obrigação de lutar para que a normalidade democrática fosse reposta.
Assim, no dia 30 de Setembro inscrevi-me no PPD, que era o partido em que me revia. Confesso que a personalidade de Sá Carneiro foi determinante para essa minha decisão, para além do ideal social democrata. Se formos olhar para os programas dos partidos naquela altura, a vida política portuguesa estava toda descentrada, ou seja, por força das cricunstâncias estava anormnalmemnte toda puxada à esquerda. E se hoje formos olhar para os pogramas desses mesmos partidos, reparamos que são totalmente diferentes do que foram.
O PREC foi um período terrível. Foram os anos das denúncias, das perseguições, das prisões com mandatos em branco e do terror que o PCP instalou através das organizações de extrema esquerda. Aliás, estamos todos lembrados de que as grandes manifestações ocorridas em Lisboa eram todas alimentadas com pessoal da margem sul do Tejo. Eram milhares Na tal muralha de aço dos homens da Setenave e da Lisnave e as pessoas viviam permanentemente aterrorizadas.
SR – Está acusar o PCP de ter instrumentalizados os trabalhadores?
FCF – Ao longo dos anos que se seguiram, comprovou-se que grande parte daquela gente teve um sonho. E um dia, quando tiveram de acordar para a realidade, viram que não era aquele o caminho e que não era possível continuar com aquele tipo de actuação. Só assim se explica que o PCP, com o peso brutal que teve na sociedade portuguesa, esteja a resvalar cada vez mais do ponto de vista eleitoral.
Ali havia sonho e muito romantismo associado a este tipo de revolução, mas um romantismo na sua verão mais violenta. Agora é claro que as pessoas foram manipuladas. O PCP enquadrou as massas, ocupou a administraão pública e os órgãos do Estado e a partir daí iam com o PCP todos os que queriam e os que não queriam. Conheço casos de pessoas que vieram a encarreirar nesse tipo de actuação para espanto de muita gente porque, provavelmente, o pensamento dessas mesmas pessoas deveria, nessa altura, estar à direita do CDS. Mas porque era preciso manter o emprego ou o negócio, acabaram por ir para o PCP.
Depois foi a história da Reforma Agrária, com promessas de uma sociedade sem classes, com promessas de que acabariam com os patrões e que os trabalhadores passariam a ser os donos da terra. Ao mesmo tempo vieram as ocupações, um fenómeno terrível, tendo o tecido económico sido bastante destruído.
SR – Do seu ponto de vista, quando é que o processo começou a ‘descarrilar’?
FCF – Acho que as coisas começaram a descarrilar logo de início, a seguir ao 25 de Abril de 1974, e tiveram o seu auge em 1975, com o Verão Quente, o cerco da Assembleia da República, os confrontos dentro do Conselho da Revolução entre os moderados e os progressistas, e o PCP apoiado pela estrutura militar, sendo que quem detinha o poder militar facilitava e legitimava as operações. Portanto, as coisas descambaram logo no início.
Penso também que não terá contribuído muito para melhorar as coisas, a presidência da República exercida pelo general António Spínola. Enqunto militar tenho por ele uma enorme admiração, mas enquanto Presidente da República teve uma actuação trágica, inábil e desastrosa. Não me atreveria a dizer que piorou as coisas, mas o certo é que não melhorou.
SR – Como é que vê as acusações de que o PPD foi alvo, de instrumentalização do general Spínola e de uma forte contribuíção para o avanço da maioria silenciosa?
FCF – Nessa altura, o PPD estava mais próximo do Primeiro Ministro Palma Carlos do que propriamente do Presidente da República. O professor Palma Carlos, que eu conheci bem, era um homem do primado do Direito e do Estado de Direito e quis rodear-se de pessoas que tivessem exactamente o mesmo ponto de vista. Daí o PPD, nomeadamente Sá Carneiro, estar muito próximo dele.
Em determinada altura, quando se começou a constatar que o general Spínola não estava a conduzir as coisas pelo melhor caminho, foi o próprio PPD que se demarcou, tendo-se afastado irremediavelmente na chamada crise Palma Carlos. Por isso é que continuo a dizer que a figura central da História de Portugal entre 1974 e 1980 é, sem dúvida, Francisco Sá Carneiro.
Não podemos negar o papel importante do PS e de Mário Soares, mas temos de admitir que o PS só começou a despertar para necessidade de se opôr ao PCP quando surgiram problemas como a crise do jornal República e a ocupação da Rádio Renascença. Quando Mário Soares percebeu que tinha de separar as águas, teve, de facto, um papel muito importante e deu-se o célebre comício da Fonte Luminosa onde esteve tudo o que era à direita do PS a apoiar. Mas não há qualquer dúvida de que a grande luta contra o Conselho da Revolução foi protagonizada por Sá Carneiro.
SR – 25 anos depois, como é que vê aquela época?
FCF – Do ponto de vista pessoal, se pudesse voltar atrás faria exactamente a mesma coisa. Do ponto de vista do país, acho que foi trágico e que ainda hoje estamos a pagar algumas facturas. Tudo isto levou às nacionalizações e a quase termos de mendigar fundos da Comunidade Internacional, à intervenção do Fundo Monetário Internacional e quase à bancarrota. Lamento muito que as coisas tivessem acontecido desta forma e lamento que tenha ocorrido o PREC porque acho que foi uma época traumatizante para toda a gente.