[ Dia 23-04-2001 ] – Eleições Legislativas.

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Setúbal na Rede – Onde é que estava no dia 25 de Abril de 1976?

Aires Rodrigues – Não posso precisar onde estava mas lembro-me de que fui à Marinha Grande votar pois era lá que estava recenseado, embora fosse candidato a deputado pelo distrito de Setúbal. Lembro-me de, nesse dia, ter ido para a sede do PS, em Setúbal, onde estive algum tempo. Depois disso, desloquei-me até ao secretariado nacional do partido, de que era membro.

E como responsável pela organização, era dali que, de certo modo, centralizava todo os resultados e as informações vindas das diversas estruturas do PS. Foi lá que passei boa parte da noite. Nessa altura ainda não existiam as sondagens, pelo que os resultados eram fornecidos pelas diferentes estruturas partidárias e, claro, com um grau de fidelidade relativo. Mesmo assim, eram informações importantes para conhecermos os primeiros resultados.

SR – Recorda-se de que modo é que foi conhecendo esses resultados?

AR – Não me recordo bem como tudo se processou, mas levei boa parte da noite a recolher informação. Do que me recordo bem é que o PS ganhou as eleições legislativas de 1976. A vitória foi a expressão da afirmação do PS como o partido de maior expressão eleitoral nacional e como um partido de grande implantação nas zonas industriais. A implantação do PS e a consequente vitória nas legislativas foram o fruto do trabalho da ala laboral do PS, um trabalho que, aliás, ultimamente tem vindo a perder-se.

Devo referir que, naquela época, o PS afirmou-se como um partido de expressão nacional com implantação em todos os sectores e nomeadamente junto das zonas de tradição operária mais antiga, como foi o caso de Setúbal e da Marinha Grande. Naquelas eleições, deu-se, de facto, a expressão de uma aspiração das pessoas a um partido com uma orientação socialista mas onde se pudessem exprimir as diferentes correntes de opinião e as diferentes tendências.

SR – Como é que o PS se implantou, se Setúbal era conhecida como a cidade vermelha e o resto do distrito não andava longe disso?

AR – O distrito de Setúbal era um grande bastião da classe operária portuguesa pois era aqui que se concentravam as grandes indústrias do país. Por exemplo, só a Lisnave tinha quase 15 mil trabalhadores e todos eles com uma enorme capacidade de organização e de intervenção. Basta lembrar que foram eles que saíram sucessivamente à rua de cada vez que ocorriam golpes de direita, como foi o caso do 28 de Setembro e do 11 de Março. À Lisnave, em Almada, juntava-se o poderoso sector industrial do Barreiro também com milhares de operários. Isto fazia com que formasse um verdadeiro exército operário de cada vez que saíam à rua. E o PS tinha uma intervenção muito activa, particularmente na Comissão de Trabalhadores da Lisnave e, inclusivamente, alguns deles foram candidatos do PS pelo distrito às legislativas de 1976.

SR – O facto do distrito ser, naquela época, o terreno mais favorável à esquerda e à extrema-esquerda não o levou a recear ser o cabeça de lista pelo PS às legislativas?

AR – O PS tinha uma componente operária que lhe deu a vitória quer nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, quer nas eleições legislativas de em 1976. Era um ala com forte implantação nas comissões de trabalhadores que o PS ajudou a formar. Inclusivamente, foram os militantes do PS – incluindo eu, que nessa altura era deputado à Constituinte – que fizeram com que ficasse consignado no texto constitucional o direito à criação de comissões de trabalhadores e o direito às diferentes opiniões dentro dessas mesmas comissões.

Refira-se que, contrariamente aos sindicatos, onde havia apenas uma lista candidata, nas comissões de trabalhadores havia o direito a apresentar várias listas e o direito à expressão, após a eleição. Ou seja, ficavam representadas, nas comissões, as diferentes tendências existentes na empresa. O que, de facto, dava às comissões de trabalhadores um carácter mais abrangente e mais plural. E foi isso que fez com que o PS tivesse tão grande expressão naqueles dois actos eleitorais.

SR – Pode dizer-se que ia confiante para as eleições de 1976, no que diz respeito ao eleitorado do distrito?

AR – Não ia nada intimidado, pelo contrário, devo dizer que foi uma experiência extremamente rica e interessante, pois como a região era muito activa por força do PCP e da extrema-esquerda, o debate tinha sempre lugar nas sessões realizadas em Setúbal. Foram encontros extremamente interessantes e eram sempre colocadas todas as questões que surgiam.

As sessões de esclarecimento do PS estavam sempre cheias e para essa afirmação muito contribuiu a vitória eleitoral conseguida nas eleições para a Constituinte.

Por outro lado, as características das várias sensibilidades do PS dessa altura, faziam-no um partido de debate e de reflexão. Tudo isso foi uma experiência extremamente importante. De tal modo que uma das consequências da regressão que o país tem vindo a sofrer nos últimos anos, foi o desmantelamento das principais unidades industriais.

Existe alguma incompatibilidade entre um tecido industrial forte – tal como existia antes – e as necessidades das multinacionais, que hoje estão na origem dos destinos do mundo.

Graças a isso, hoje o distrito de Setúbal está bastante amputado e sangrado na sua massa trabalhadora, com problemas sociais graves pois os desmantelamentos resultaram em milhares de trabalhadores na pré-reforma e na precariedade do trabalho. Naquela altura, era um distrito fortemente industrial com a consciência de ter estado sempre na primeira linha da resistência ao regime fascista.

SR – Não tendo, na altura, qualquer ligação com o distrito de Setúbal, como é que surge como cabeça de lista pelo PS?

AR – Pelos vistos, o trabalho que fiz na direcção do PS no distrito de Leiria foi considerado eficiente pois o partido ganhou as eleições para a Constituinte naquele que era considerado um dos bastiões industriais. Depois disso fui para o secretariado nacional, em Lisboa. Um ano depois, em 1976, quando foram organizadas as listas para as legislativas, o distrito de Setúbal pretendia um cabeça de lista que tivesse conhecimento dos problemas laborais e uma actividade no sector operário. O secretariado nacional do PS – de que eu fazia parte no que se refere à ligação com o sector laboral – propôs-me e a Federação Distrital de Setúbal aceitou o meu nome com agrado.

O facto de termos uma forte ligação com o sector laboral – nomeadamente através da estrutura do PS denominada Comissão do Trabalho – permitia-nos saber o que se passava nas empresas e nas grandes unidades industriais. Assim, tivemos conhecimento de muitos problemas no sector operário.

SR – Quando aceitou encabeçar a lista por Setúbal, que conhecimento tinha da realidade do distrito?

AR – Conhecia um distrito com uma enorme actividade, pois era aqui que estavam centradas muitas pequenas e médias indústrias mas também as principais indústrias nacionais, como era o caso dos grandes estaleiros navais e das indústrias químicas de base. Também por essa razão, era um distrito chave para a economia para o país. Um peso económico que, por consequência, lhe atribuía um enorme peso político pois tal advinha da massa trabalhadora e da sua enorme capacidade de mobilização e de reivindicação dos direitos e das liberdades. Por isso, era considerado por todas as forças políticas –da esquerda à direita – como o distrito chave para o país.

SR – Visto à distância, e tendo até em conta o Verão Quente, o distrito não lhe dava uma imagem negativa?

AR – De modo nenhum. É perfeitamente natural que, ao fim de 48 anos de ditadura, o processo revolucionário que revolveu o país de norte a sul tenha tido a participação de todas as camadas etárias, com homens e mulheres que queriam saber e queriam participar. Era uma paixão enorme que, no seio das famílias, chegou mesmo a provocar separações. Foi uma paixão ganha pelo povo depois de quase 50 anos de ditadura. Naturalmente que podem ter ocorrido excessos mas foram excessos próprios de um processo revolucionário.

SR – Recorda-se como foi a sua chegada a Setúbal e como decorreu o seu trabalho na campanha eleitoral?

AR – Já tinha um relacionamento com os militantes mais activos do PS de Setúbal por via das respectivas comissões de trabalho. Por outro lado, no Verão Quente de 1975, e por força dos processos que foram ocorrendo, Setúbal era um dos distritos que implicava uma maior ligação ao secretariado nacional do PS, bem como uma presença e mobilização permanente do partido. Lembro-me perfeitamente de estar em permanente ligação com os militantes das diferentes secções do distrito de Setúbal, nomeadamente por causa das tentativas de assalto às sedes do PS.

Curiosamente, algumas das pessoas que encabeçaram as tentativas de assalto às sedes do PS, por o considerarem de direita, eram dirigentes e militantes do Movimento de Esquerda Socialista (MES) que, uns anos depois, entraram para o partido. Também curiosamente, todos eles ocupam cargos públicos de destaque, a começar pelo Presidente da República  – que foi um dos dirigentes do MES -, para além de João Cravinho e muitos outros.

Devo dizer que não me espanta particularmente – na maioria dos casos – a atitude de conivência com uma política de direita e o facto de se aceitar uma política de direita dentro do próprio PS. Naquela altura, embora isto tivesse uma capa de ultra-esquerda, na realidade o que acontecia era a prática da divisão entra a classe trabalhadora do PS, o que, de facto, só beneficiava a direita.

SR – De alguma forma, essas tentativas de divisão provocaram dificuldades à campanha eleitoral do PS no distrito?

AR – Concerteza, mas isso acabava por ser ultrapassado pela forma como os exprimíamos nos debates e pelas responsabilidades que tínhamos, nomeadamente junto das comissões de trabalhadores em todo o distrito.

De alguma forma esta nossa atitude desmentia os que estavam interessados em praticar a divisão. E nunca tive um único caso de violência, agressões ou invasão das instalações nas sessões de esclarecimento que fiz por todo o distrito, embora elas tivessem sido muito animadas e mais ou menos agitadas.

SR – Com a vitória do PS, em Abril de 1976, é eleito deputado à Assembleia Legislativa. A sua ligação com Setúbal permaneceu?

AR – A minha ligação continuou porque eu procurei exprimir, na Assembleia Legislativa, as aspirações dos trabalhadores do distrito. Foi aí que começou a minha ruptura com o PS. Lembro-me de, no primeiro Orçamento Geral do Estado (OGE) feito pelo PS, ter sido previsto um aumento substancial das verbas para as Forças Armadas e reduções noutros sectores, como era o caso da Segurança Social e da Saúde. E isto era exactamente o contrário do que tínhamos defendido durante a campanha eleitoral.

Depois veio a lei dos contratos a prazo que considero a pior medida alguma vez tomada neste país, pois abriu a porta à precariedade do

Trabalho. Isso constata-se facilmente, pois cerca de 25 anos depois da aprovação da lei, 60%  dos trabalhadores portugueses estão em situação precária. Ora, isto é exactamente o contrário do que foram as aspirações do 25 de Abril e do que eram as aspirações dos militantes e dirigentes socialistas daquela altura.

SR – Foi essa rota de colisão com o PS que fez com que chegasse ao final do mandato como deputado independente?

AR – Sim, eu por Setúbal e Carmelinda Pereira por Lisboa fomos os primeiros deputados independentes na cena nacional. Depois, segui um percurso diferente do percurso PS. Fundei o POUS/Partido Operário de Unidade Socialista que, naquela altura, correspondia a uma forte aspiração de muitos socialistas que acreditavam no socialismo e não numa política de subordinação a interesses estranhos ao PS. Não foi possível consolidar o POUS, em termos de massas, mas julgo que hoje – e pelo grau de abstenção que temos visto no país – continua a ser necessário entender esta atitude como uma rejeição activa do espectro partidário existente.

SR – A sua candidatura à presidência da República, em 1980, foi também um sintoma do desânimo que vinha acumulando?

AR – Sim, e foi também a necessidade de exprimir o desencanto de muitos militantes socialistas e até de outros partidos. Foi uma afirmação civilista contra a apetência dos militares em dirigirem os destinos do país, nomeadamente Ramalho Eanes e Soares Carneiro. Ou seja, na minha opinião eram duas faces da mesma moeda. Na altura era muito importante afirmar as aspirações das pessoas contra a prática de ingerência, por parte dos militares, na vida política portuguesa. Não estou nada arrependido da candidatura, pelo contrário, penso que foi importante ter conseguido afirmar o primado da organização da sociedade em bases civis.

AR – Continuo como militante e dirigente do POUS e tenho uma intervenção na Marinha Grande. Infelizmente, hoje só os chamados partidos oficiais é que têm a atenção da comunicação social, mas, apesar disso, prossigo a minha actividade política normal de intervenção na vida local e nacional e também no partido, agora menos conhecido do que anteriormente. Continuamos com a mesma linha de orientação que é, de facto, o socialismo e a defesa dos interesses das camadas trabalhadoras da população.

SR As eleições legislativas de 1976 podem ser interpretadas como o factor que encerra o ciclo revolucionário e que, ao mesmo tempo, efectiva a democracia no país?

AR – A institucionalização da democracia em Portugal foi a elaboração da Constituição e a sua posterior aprovação, em Março de 1976, antes das eleições legislativas. Esse foi, de facto, o marco histórico que permitiu institucionalizar a democracia. Até porque a Constituição de 1976, por força das exigências das diferentes correntes do PS, integrou aspectos da mobilização popular, desde as comissões de trabalhadores até à liberdade sindical, passando pelo direito à greve e pelos diferentes direitos laborais e liberdades.

As eleições de 1976 foram, de facto, importantes pois, de certo modo, estabelecem os primeiros governos constitucionais. Contudo, o primeiro Governo Constitucional eleito começou a tomar medidas contrárias ao seu próprio programa – o do PS – e iniciou ali um ciclo que, mais tarde, vem abrir as portas à política de submissão às grandes multinacionais. O que, em minha opinião, teve os resultados catastróficos que hoje estamos a ver, em particular no distrito de Setúbal onde essa política teve consequências tremendas, levando ao desaparecimento das indústrias e ao surgimento da precariedade, à desertificação de regiões e ao agravamento de situações sociais de uma forma brutal.

Mas isto não era uma inevitabilidade pois teria sido possível, com uma outra orientação, termos hoje uma situação diferente não só em Setúbal como em todo o país. É um custo grave que ainda não terminou, pois  ainda estamos a pagá-lo.