[ Dia 21-01-2002 ] – Francisco do Ó Pacheco, antigo presidente da Câmara Municipal de Sines.

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Setúbal na Rede – Porque é que se candidatou à presidência da Câmara de Sines, nas primeiras autárquicas, em 1976?

Francisco do Ó Pacheco – A minha candidatura surgiu de forma natural, mas nunca chegue a perceber muito bem como é que isso aconteceu. Eu fazia parte da política local e entre 1974 e 1975 estive envolvido em quase tudo o que havia a fazer, desde a Concelhia ao Secretariado do PCP, passando pela ocupação de um café para a instalação de uma cooperativa de consumo. Depois disso, estive envolvido na criação de uma cooperativa de habitação e de uma cooperativa agrícola. A certa altura, quando foi necessário designar alguns quadros políticos para a reforma agrária em Alvalade Sado, no concelho de Santiago do Cacém – onde tinha havido uma intervenção do Estado em algumas fábricas de tomate -, o Ministério da Agricultura requisitou-me para a administração de uma dessas unidades fabris. Andei  por lá mais de um ano e acompanhei todo o processo da reforma agrária.

Entretanto, veio o sexto Governo Provisório e o então ministro Lopes Cardoso cessou a minha requisição ao banco e mandou-me regressar ao meu posto de trabalho. Na altura era bancário, em Sines. Quando cheguei, em Setembro de 1976, decidi tirar um mês de férias. Mas precisavam de mim na Comissão Administrativa, presidida por António da Silva Jorge, e de cuja lista eu fazia parte, como suplente. Mas as pessoas foram desistindo e chegou a altura de eu assumir funções. Foi aí que eu soube que me tinham escolhido como candidato à presidência da Câmara.

SR – Depois de quase dois anos fora do concelho, estava à espera de ser escolhido para encabeçar a lista da FEPU à Câmara?

FOP – Fui apanhado completamente desprevenido e disse que sim. Creio que o PCP e o MDP devem ter começado a discutir as listas da FEPU em Maio ou Junho. O facto de eu ter regressado a Sines, em Setembro, deve ter-se gerado o consenso relativamente ao meu nome, uma vez que estava disponível. Quando me disseram eu aceitei, pois estava, de facto, disponível. E os três meses que passei na Comissão Administrativa foram bastante importantes para me inteirar das coisas em relação ao funcionamento da Câmara Municipal.

SR – Quando aceitou encabeçar a lista, acreditava estar em condições de ganhar?

FOP – Nunca tive quaisquer dúvidas, pois nas eleições anteriores, o PCP tinha sido o partido mais votado em Sines. Aliás, o Partido Comunista sempre teve um enorme peso, neste concelho.

SR – Porque é que a campanha eleitoral, em Sines, foi considerada uma das mais aguerridas do distrito?

FOP – A corrida era entre a FEPU e  o PS e as coisas andavam mesmo quentes por estes lados. Havia uma enorme participação popular e a linguagem era completamente diferente da actual. Mas uma das coisas que mais nos marcaram foi a conhecida guerra dos cartazes. Andávamos todos a ver quem é que chegava primeiro aos postes para colar os cartazes, por vezes colávamos uns por cima dos outros e isso acabava por causar problemas. De vez em quando havia uma noite mais ‘animada’, em que o pessoal chegava à discussão e até à pancada. Especialmente quando víamos alguém com facas agarradas à ponta de algumas canas para cortar os cordéis dos pendões. As coisas aqueciam e acabávamos a fazer o mesmo aos outros. Houve alturas em que as discussões passavam das palavras aos actos, especialmente com algumas equipas de colagem de cartazes mais aguerridas. As coisas eram de tal forma que acabou por ser comum fazer-se segurança às equipas que iam para a rua colar cartazes.

Naquela altura, a luta político-partidária era muito acesa e as coisas aqueciam muito entre a FEPU e o PS. Em 1979, o cenário mudou e a luta passou a ser mais com o PPD, na altura em coligação com o CDS. Nesse ano, durante a campanha eleitoral, houve mesmo uma série de chatices entre a APU e a AD. Tanto que o resultado eleitoral dá quatro vereadores à APU e um à AD, ao passo que o  PS não conseguiu eleger. Um cenário bastante diferente do de 1976, em que a FEPU ganhou com maioria absoluta (55%), tendo ganho três vereadores, contra os dois do PS, que obteve  35,6%.

Tenho muito boas memórias daquelas campanhas eleitorais, pois as pessoas eram muito participativas. Lembro-me de ter feito sessões de esclarecimento por todo o lado. Umas eram maiores e outras menores, vieram cá diversas figuras nacionais do PCP e os sítios onde íamos enchiam por completo. Fazíamos também reuniões rua a rua, normalmente na casa de um dos moradores onde se juntavam 30 a 40 pessoas, umas vezes na zona mais urbana e outras nas zonas rurais. Isto acontecia todas as noites e conseguimos estar em todas as ruas deste concelho. Andámos pelas tabernas, pelas colectividades e pelas casas e, entre uns copos e uns petiscos, passávamos a nossa mensagem. Não havia tempo para dormir porque foram anos alucinantes de trabalho intenso e de muita luta por aquilo em que acreditávamos.

SR – Como é que reagiu quando soube que tinha sido eleito?

FOP – Estávamos à espera de uma maioria absoluta, pois a implantação do PS, no concelho, não era lá muito forte, e o PCP era, de longe, o partido maioritário. Mesmo assim, ficámos todos exaltados com a vitória. Reunimo-nos na Escola Primária, onde se estavam instaladas a secções de voto – o que, aliás, ainda hoje acontece. Quando soubemos dos resultados, saímos à rua e fizemos uma enorme caravana que acabou numa concentração no Salão do Povo. Cada um de nós foi buscar bebidas e petiscos para comemorar a vitória, nas instalações do Salão do Povo.

SR – A experiência que tinha de gestão do município não era muito vasta. O que é que foi feito no primeiro mandato?

FOP – Foi um mandato bastante frutuoso mas, ao mesmo tempo, difícil. Para começar, tivemos de ocupar o edifício dos Paços do Concelho, que havia sido tomado pelo Gabinete da Área de Sines (GAS), em 1971. Por causa disso, a Câmara funcionava num edifício emprestado pelo GAS, que era um órgão desconcentrado do Estado onde estavam representados quase todos os ministérios. Quando ganhámos as eleições de 1976, a primeira coisa que fizemos foi dar seis meses ao GAS para devolver o edifício à Câmara e foi isso mesmo que aconteceu. Saíram todos pacificamente, em Julho de 1977, e foram para Santo André. Naquela altura a Câmara tinha poucos funcionários, cerca de 60, um quadro técnico e nenhum superior, um carro, um tractor, um camião do lixo e pouco mais. Como estava tudo por fazer e dinheiro não havia, fomos fazendo obras aos poucos e com a ajuda da população. A primeira lei de atribuição de competências aos municípios saiu em Outubro de 1977, pelo que andámos cerca de 10 meses a trabalhar sem legislação. E andámos cerca de três anos a ‘navegar’ sem lei de finanças porque esta só surgiu em 1979. Lembro-me de que o primeiro orçamento da Câmara de Sines, já no meu segundo mandato, foi de cerca  de 5 mil contos. No seguinte já passámos para os 40 mil contos.

SR – Como é que se geria um município sem dinheiro?

FOP – Fazíamo-lo com as poucas verbas que iam sendo distribuídas em Setúbal, onde estava instalado o Gabinete Coordenador Distrital de Obras Municipais que dava o dinheiro de acordo com os projectos que as câmaras apresentavam. O director lá via os projectos e, com alguma dificuldade, ia arranjando uns dinheiros para distribuir. Cada um dos presidentes puxava ‘a brasa à sua sardinha’, mas o certo é que todos tinham consciência de que as verbas destinadas pelo Ministério das Obras Públicas para este gabinete eram mínimas e tinham que dar para os treze municípios. Apesar das limitações financeiras, o primeiro mandato foi rico em obras. Para uma estrada, por exemplo, fazia-se o concurso e passava-se uma declaração de dívida para levantar no banco. Isto foi ocorrendo até que as declarações de dívida foram proibidas, dez anos depois. Naqueles anos tivemos também a participação do trabalho da população em quase tudo o que foi obra porque as pessoas mobilizavam-se com enorme facilidade.

Das dez aspirações da população, no nosso primeiro mandato, cumprimos algumas: pavimentámos a rua que ia para a praia, lançámos o concurso para o mercado municipal – que era uma aspiração de mais de 50 anos -, e encaminhámos o processo de construção do quartel dos bombeiros. E encaminhámos outros tantos processos que também viriam a concretizar-se no segundo mandato. Nos mandatos seguintes, a população continuou a mobilizar-se. Com os materiais da Câmara e o trabalho dos moradores, fizeram-se obras como postos médicos um pouco por todo o concelho, a reparação de todas as escolas e salões de convívio. Tudo trabalho feito aos fins de semana por dezenas e dezenas de pessoas. Sines era o exemplo prático de que a teoria da participação popular funcionava. Esta característica foi sendo atenuada com o tempo, embora ainda tenhamos uma réstia de organização popular, através de algumas comissões de moradores. Contudo, continua a ser uma população politicamente esclarecida e participativa.

SR – Quando é que começou a perceber que a participação popular já não tinha a força dos primeiros anos?

FOP – Foi nos anos 80, quando as taxas de inflação subiram assustadoramente para mais de 30%. Foi a época das grandes crises e a vida passou a ser tão complicada que as pessoas começaram a preocupar-se mais com as dificuldades do dia a dia. A euforia dos primeiros anos arrefeceu e as pessoas começaram a perder o ânimo e a ver a vida a andar para trás.

SR – No primeiro mandato contou com dois vereadores do PS, e no segundo com um eleito da AD. Como é que foi o relacionamento entre a maioria e a oposição?

FOP – Os dois primeiros vereadores do PS eram duas pessoas trabalhadoras. Infelizmente já faleceram e foram dois grandes amigos que perdi. Um tinha sido deputado na Constituinte, pelo que tinha experiência política, e o outro tinha sido engenheiro civil na Câmara de Lisboa. Por isso, a sua experiência foi muito importante para o desenvolvimento de projectos da Câmara. A questão político-partidária não se intrometia no nosso trabalho. Infelizmente isso já não aconteceu nos meus últimos mandatos, particularmente no último, entre 1993 e 1997, tendo os vereadores do PS chegado ao ponto de serem eles a escolherem os pelouros. Essa é uma prerrogativa do presidente da Câmara e não dos vereadores. Quanto ao vereador da AD, também trabalhou e teve pelouros, aliás, à semelhança do que aconteceu com a oposição nos anos seguintes, com excepção do comportamento do PS no meu último mandato.

SR – Fez seis mandatos com maiorias absolutas. A que é que isso se deveu?

FOP – A população confiava nas minhas equipas e sabia que trabalhávamos a sério para o bem do concelho. Foi a confirmação de uma política de participação das pessoas e continuo a achar que uma das obrigações do poder local continua a ser a de fazer, no dia a dia, um trabalho intenso com a população. Mas nunca fiz fosse o que fosse para que o meu nome fosse escolhido pelo PCP para encabeçar as listas. As coisas aconteceram naturalmente e, creio, de uma forma consensual.

SR – Qual foi o mandato que lhe pareceu mais complicado?

FOP – O segundo mandato foi muito complicado porque começámos a assumir uma posição de confronto directo com GAS. Tomámos conhecimento daquilo que era o complexo industrial de Sines – na altura em construção – e as consequências que ele poderia trazer para o nosso concelho. Então confrontámos o GAS e o Governo com os problemas, de tal modo que em 1982, no final do segundo mandato, fizemos a célebre paralisação do porto de Sines, com um boicote à entrada de navios. E a vila parou. Até aí a Câmara de Sines era secundarizada, relativamente ao GAS, por parte da administração central.

SR – Com a greve sentiu que o concelho tinha reconquistado a sua autonomia?

FOP – A greve foi a maior demonstração de força da população do concelho e com essa posição conseguimos provar ao GAS que não fazia nada em Sines se nós não o quiséssemos. A partir daí o Governo passou a tratar-nos como tratava as outras câmaras. Na altura estávamos a elaborar o PDM/Plano Director Municipal, que levou oito anos a completar. Foi o primeiro PDM do país, mas levou anos a ser feito por causa do GAS, cujo plano geral para o concelho não permitia mais de cinco ou seis mil habitantes em Sines. A ideia do gabinete era fazer uma cidade em Santo André, que fica em Santiago do Cacém, e concentrar ali todo o crescimento urbano.

O crescimento de Sines estava congelado pelo GAS, que nem sequer permitia o licenciamento de novos edifícios. Para além disso, havia o aumento da expansão industrial que limitava bastante o concelho. Depois de muita luta conseguimos preservar boa parte de Sines, e a prova disso foi a criação do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina. Uma terceira vertente, de que não abríamos mão, era a da criação de um porto de pesca. E o plano do GAS não previa nada disso. Aliás, chegaram a dizer que os pescadores tinham que mudar de profissão.

SR – Que balanço faz dos seis mandatos à frente da Câmara?

FOP – Creio que é um balanço bastante positivo e não tenho qualquer dúvida de que, se não tivéssemos sido tão interventivos Sines não era a cidade que hoje conhecemos. Por exemplo, não teria praia. O plano da administração central era aterrar a praia Vasco da Gama e a zona onde hoje é a marginal, para ali fazer um terminal de carga geral. Não havia o terminal de carvão onde está actualmente, mas sim no meio da baía, não haveria porto de pesca e, provavelmente, teria cinco ou seis mil habitantes. Actualmente, só a sede de concelho tem 15 mil. Demos ao concelho um parque natural e alguma componente turística,  e construímos os equipamentos para as populações onde não havia praticamente nada. E Sines passou a ser um grande pólo de desenvolvimento do país, contrariando a ideia mantida até 1970, de que era algo complementar a Lisboa.

Mesmo assim, houve coisas que não foi possível preservar. Com a vinda do complexo industrial, Sines perdeu algumas das suas características mais importantes, nomeadamente a que lhe permitia um bom crescimento económico, como era o caso das actividades turísticas e comerciais ligadas à pesca e ao mar. Sines descaracterizou-se, nomeadamente do ponto de vista cultural. Hoje, a maior parte dos residentes do concelho não são de cá. Vieram do Barreiro, de Setúbal, das ex-colónias e de diversos outros países.

SR – Deparou-se com questões particularmente delicadas com as quais teve dificuldades em lidar?

FOP – Confrontámo-nos com algumas e essas eram a nossa principal dor de cabeça. Nos primeiros anos a vida do concelho foi bastante complicada porque a construção do complexo industrial trouxe para cá muitos trabalhadores e, atrás deles, muita prostituição e marginalidade. Nessa altura já Sines era uma grande urbe, com todos os pontos negativos que isso acarreta. Quando terminaram todas as obras, em 1984, as coisas começaram a acalmar, muitos trabalhadores radicaram-se cá e trouxeram as famílias e a vida social do concelho estabilizou. 

SR – Porque é que nas autárquicas de 1997 já não concorreu à presidência da Câmara?

FOP – Já no quinto mandato eu manifestei essa vontade. Estava muito cansado e achei que aquela era uma boa altura para sair. Gerir o concelho naqueles tempos conturbados não foi nada fácil e, com os anos, uma pessoa começa a sentir o desgaste.

SR – Hoje em dia, como é que vê o poder local?

FOP – O que se passou em Sines ao longo de todos estes anos prova a importância do poder local democrático, em Portugal. Só é pena que o poder local não tenha dado o tão necessário salto para as regiões administrativas. As autarquias são determinantes para a vida e o futuro dos concelho e, por essa mesma importância, acho que já deveríamos ter muito mais competências. Não se compreende que o poder local não tenha, por exemplo, centros de saúde concelhios e não acompanhe o processo de acompanhamento às pessoas, por parte das instituições.

SR – Sem novas competências, o poder local corre o risco de estagnar?

FOP – Já está em processo de estagnação. O poder local precisa de novas competências, como, por exemplo, na saúde, na toxicodependência e na formação profissional. Como representantes das populações, as autarquias têm toda a responsabilidade em acompanhar a vida do concelho, nas suas mais diversas vertentes. O poder local tem uma particularidade única: a participação popular e o contacto directo com a realidade das populações. seta-1943527