Setúbal na Rede – Quais foram as razões que o levaram a concorrer à presidência da Câmara do Barreiro, pela FEPU, nas eleições autárquicas de 1976?
Helder Madeira – Fui uma das dezanove pessoas que formaram a Comissão Administrativa da Câmara, em 1974. Estive lá até Novembro de 1975, altura em que fui designado para Governador Civil do Distrito de Setúbal. Desempenhei funções até Outubro de 1976, altura em que o Governo eleito, do PS, designou um novo representante. A experiência que tinha de poder local, quer através da Comissão Administrativa quer pelas funções de Governador Civil, aliada ao facto de, desde sempre, ser militante do PCP, foram factores que levaram à escolha do meu nome para encabeçar a lista da FEPU, uma coligação que incluía também o MDP e, no caso do Barreiro, um elemento da Frente Socialista Popular (FSP).
SR – Como é que reagiu à decisão?
HM – Senti alguma apreensão e isso tem a ver com a minha maneira de ser. Sempre que surge um desafio fico sempre na dúvida se hei-de aceitar, ou não, e se terei capacidade para desempenhar as funções. Mas acabei por aceitar a proposta. Até porque não havia forma de recusar tendo em conta que o meu nome foi aprovado pela população, em plenário realizado durante as festas do Barreiro. Fiquei bastante sensibilizado com a decisão saída do plenário e disse, na altura, “se a população assim o quer, eu avanço”.
SR – O facto de, na altura, ser reconhecido como anti-fascista contribuiu para o consenso em volta do seu nome?
HM – Creio que sim, pois andei em diversas lutas, nomeadamente para a campanha eleitoral de 1969, pela CDE/Comissão Democrática Eleitoral, que tinha uma actividade regular e semi-clandestina. E talvez também porque a família a que pertenço ser muito conhecida.
SR – Quando aceitou encabeçar a lista da FEPU, esperava ganhar as eleições?
HM – Esperava ganhar, pois a força do PCP era enorme, no Barreiro. O partido sempre teve um forte enraizamento neste concelho e isso dava-nos a garantia de ganhar. Para além de mim, foram eleitos José Baptista, do MDP, Carlos Maurício, que nas autárquicas de 2001 foi candidato da CDU à Câmara, Joaquim Serralheiro, Vítor Hugo Nunes, que era da FSP, e Joaquim Matias que hoje é deputado do PCP na Assembleia da República. O PS, cujo cabeça de lista era Fernando Jorge Camacho Fagundes, conseguiu eleger três vereadores. Na altura era empregado de escritório da CUF, hoje é advogado.
SR – De que forma é que conduziu a campanha eleitoral?
HM – Foi uma campanha muito boa e apresentámos um programa bastante completo, com base na consulta aos problemas da população. O programa foi imprimido com o sistema de stencil electrónico porque nem sequer ahvia dinheiro para o mandar fazer na tipografia. O desenho da primeira página foi feito por um membro do PCP que actualmente é desenhador da Câmara. Tratou-se de uma campanha interessante, por ser a primeira e pelo facto de termos feito as coisas de uma forma bastante profunda. Apresentámos propostas concretas e um programa muito aliciante e bastante pormenorizado, com base no levantamento rigoroso que tínhamos feito ao nível da carências da população.
A campanha decorreu de forma bastante civilizada, não tendo ocorrido problemas de maior entre as forças políticas concorrentes. Fizemos uma campanha porta a porta e bastante chegada à população, discutimos com as pessoas e, inclusivamente, explicámos como podiam votar. Aquela era a primeira vez que se votava livremente para as autárquicas e, apesar da população do Barreiro ser politicamente instruída, não havia ainda o conhecimento de como é que funcionava o acto eleitoral para as autarquias. Aliás, pouca gente tinha experiência de votar. Lembro-me de que a única vez que votei, antes do 25 de Abril, foi nas eleições de 1969, em que concorremos pela CDE, na chamada pseudo-abertura Marcelista. Houve algum actualização dos cadernos eleitorais mas poucas foram as pessoas que puderam votar, naquela altura. E ganhámos as eleições de 1969, no Barreiro.
SR – Como é que interpreta a ausência de conflitos entre as candidaturas de Dezembro de 1976, no Barreiro, numa altura em que outros concelhos viam a disputa chegar à violência física?
HM – O PS tinha ganho as primeiras legislativas, mas no Barreiro não havia qualquer dúvida quanto à enorme força do PCP que, contrariamente ao PS local, estava bastante bem organizado e com apoio popular. Lembro-me de um pormenor relativo à campanha de 1976, e que veio a repetir-se nos dois ou três actos eleitorais seguintes: os cartazes não eram personificados. Eram feitos a nível central e continham a mensagem da força política concorrente. Não havia a fotografia do cabeça de lista porque, naquela altura, o que os partidos queriam era apostar na mensagem e não nas pessoas. E na campanha para os outros três mandatos que fiz na Câmara também não apareceu qualquer cartaz com a minha fotografia. Era a forma de estar de todos os partidos, naquela altura. A partir daí, as coisas começaram a mudar e as campanhas já tinham as fotos dos candidatos.
SR – Essa mudança de atitude representou, de alguma forma, uma mudança na política autárquica?
HM – De certa forma, houve mudanças que surgiram com o tempo. Principalmente ao nível de alguns conceitos que aos poucos fomos abandonando. Primeiro, não queríamos personalizar as campanhas mas acabámos por fazê-lo, depois surgiram as novas tecnologias que ajudaram imenso as campanhas e a forma de abordagem das pessoas.
SR – Quais foram os pontos essenciais da campanha eleitoral de 1976?
HM – Lutámos muito por questões centrais que diziam respeito às necessidades das pessoas. Praticamente não tínhamos esgotos, a maior parte da população não era servida de água, a higiene e limpeza da vila era feita com pouquíssimos meios e enormes dificuldades. Aliás, em 1974, assim que a Comissão Administrativa tomou posse, começámos logo a trabalhar no sentido de resolver estas questões fundamentais para os barreirenses.
SR – Como é que classifica o seu primeiro mandato?
HM – Foram três anos muito cheios, quer de trabalho quer de boa vontade. Trabalhámos todos em conjunto, incluindo os vereadores do PS – que sempre tiveram pelouros – e estávamos imbuídos de um espírito de colaboração. Foram anos de grandes dificuldades financeiras porque não havia dinheiro. Então tínhamos de pressionar a administração central e, todos os sábados, reunir em Setúbal para mostrar os projectos, de resto como faziam todos os outros municípios do distrito, de modo a sermos contemplados com algumas verbas do Ministério da Administração Interna. Essas reuniões e o conhecimento que os autarcas, no geral, tinham dos problemas dos outros concelhos – por via do trabalho feito nas comissões administrativas – davam-nos uma visão mais alargada e regional das questões, e não nos permitia sermos demasiado egoístas e puxar demasiado ‘a brasa à sardinha’ do concelho que cada um de nós representava.
Aliás, quase todos tínhamos problemas semelhantes e tudo isso pesava muito na opinião dos autarcas quando exigiam verbas para obras. Passámos a perceber que o dinheiro teria de ser repartido por mais municípios. Ao nível do funcionamento, as coisas foram facilitadas porque, devido ao conhecimento que adquiri na Comissão Administrativa, sabia como é que a autarquia funcionava e, por outro lado, havia já uma forte ligação com os trabalhadores da Câmara. Lembro-me perfeitamente de que a nossa maior preocupação e prioridade foi a do alargamento da rede de abastecimento de água e da rede esgotos do concelho porque estávamos claramente na presença de um caso de saúde pública. Apesar da falta de dinheiro, o primeiro mandato foi francamente positivo pois fizemos acções pioneiras para a época. Exemplo disso foi o boletim municipal que, à semelhança do Seixal, tinha sido iniciado ainda na época da Comissão Administrativa.
SR – Alguma vez foi chamado a resolver questões fora da competência da autarquia?
HM – Isso aconteceu várias vezes em todos os mandatos porque durante muitos anos as pessoas tiveram dificuldade em perceber o que é que era competência da Câmara e o que não nos dizia respeito. Lembro-me das pressões a que a Câmara era sujeita para fazer obras em edifícios particulares porque nem os inquilinos nem os senhorios as queriam fazer. Naquela altura esses pedidos eram legítimos, mas o certo é que não tínhamos capacidade para o fazer. No fundo estava a transportar-se essa responsabilidade só para a autarquia e nós tínhamos, praticamente, de nos substituir a todos os proprietários.
Depois foram as acções de despejo de pessoas que tinham ocupado casas, num processo que durou ainda uns anos com o incentivo de alguns partidos radicais. E outras pessoas vinham pedir que as defendesse em casos de atraso na renda de casa. Não podíamos fazê-lo, mas muitas vezes falávamos com o juiz para reter o processo mais umas semanas. Por outro lado era a reivindicação constante de casas para morar, quando a Câmara não as tinha. Naquela altura a população pensava que tudo era com a Câmara, mas com o tempo esta forma de ver as coisas foi sendo alterada.
SR – A presença de pequenos partidos de extrema-esquerda causaram mossa à gestão dirigida pelo PCP?
HM – Existiam alguns pequenos partidos que tentavam desestabilizar, como era o caso do MRPP, da LCI e do PRP, liderado por Isabel do Carmo. Não digo que não tivessem feito mossa e que não desestabilizassem, mas acabaram por acalmar porque, com o tempo, as pessoas começaram a ver que tinham reivindicações muito irrealistas.
SR – As reivindicações da FEPU, e posteriormente, da APU, também não eram irrealistas?
HM – Não direi que não houvesse uma ou outra proposta ou reivindicação irrealista ou utópica, mas nós tentávamos sempre ter uma grande coerência naquilo que exigíamos. O PCP era um partido responsável que, inclusivamente, chegou a fazer parte de governos provisórios, e tinha e tem uma forte representatividade na Assembleia da República. Sendo nós eleitos de um partido responsável, nunca iríamos mentir à população nem apresentar propostas que sabíamos não serem exequíveis. Quanto a algumas ideias irrealistas ou propostas que não foram cumpridas, que possam ter ocorrido nos primeiros anos, posso admitir que tenham sido motivas pela inexperiência de que todos padecíamos.
Uma das ideias que propúnhamos, e sobre a qual assumimos um compromisso perante o povo do concelho do Barreiro era a de lutar pela participação da autarquia na elaboração de um plano nacional com vista à definição da política de desenvolvimento. Nem hoje isso acontece, quanto mais naquela altura. Era uma proposta irrealista, mas nós acreditávamos nisso. Mais, continuo a acreditar nesta ideia. As autarquias têm mesmo que participar na discussão de um plano de desenvolvimento nacional. Aliás, passados alguns anos sobre o 25 de Abril devíamos ter avançado logo para a regionalização. De resto, as primeiras propostas datam dessa altura, entre 1978 e 1979.
SR – No segundo mandato, a APU voltou a ganhar com maioria absoluta e o PS perdeu um eleito para o PSD. Como é que interpreta esta mudança?
HM – O PSD sempre teve alguma importância no Barreiro e o que aconteceu foi a natural separação das águas e clarificação de posições. No concelho havia muita gente, por exemplo, da União Nacional, que logo após o 25 de Abril andou de cravo ao peito. Alguns filiaram-se no PS e, admito que outros tenham mesmo ido mais para a esquerda. Mas com o tempo as posições clarificaram-se e quem estava mais à direita foi para o PSD.
SR – Porque é que se recandidatou às três autárquicas seguintes?
HM – Recandidatei-me aos quatro mandatos porque gostei bastante da experiência. Nunca teve nada a ver com protagonismo, uma vez que o que fiz foi sempre com grande naturalidade e sentido de serviço público. É aliciante sentir que estamos a ser úteis à comunidade, apesar de, de vez em quando, sentirmos alguns embates. Isso acontecia especialmente nas campanhas eleitorais, quando éramos confrontados com o descontentamento da população relativamente a assuntos com os quais pouco tínhamos a ver. Foi o caso das construções clandestinas, hoje chamadas Áreas Urbanas de Génese Ilegal, (AUGI).
As pessoas queriam os esgotos e os arruamentos mas achavam que era a Câmara que tinha de o fazer. Aliás, essa ideia só começou a ser ultrapassada de há uns dez anos a esta parte. Sempre que acabava um mandato dizia que se o partido entendesse substituir-me, eu estava à disposição. Mas isso não aconteceu até ao quarto mandato, altura em que eu achei que já chegava. Sempre achei que um autarca deve fazer, no máximo, quatro mandatos porque estar constantemente a decidir é um processo muito desgastante. Por isso, é preciso dar lugar a gente nova com ideias frescas.
SR – Qual dos quatro mandatos sentiu ter sido mais difícil?
HM – Sem dúvida que o último mandato foi o mais difícil, quer pelo cansaço que eu já sentia – uma vez que tinha estado à frente do concelho nos anos mais difíceis, com desemprego, encerramento de empresas e a crise dos anos 80 – quer por uma série de azares que ocorreram ao longo desses quatro anos. Tivemos algum azar porque um dos vereadores da APU faleceu e foi substituído, um outro foi para a tropa e teve de ser substituído, outro não acabou o mandato porque sofria dos ouvidos e teve de ser operado, e ainda o caso do vereador do PRD, Luís Mateus, actualmente eleito do PS na Assembleia Municipal, que abandonou a Câmara e foi substituído pelo número dois.
Mas como este vereador era professor teve de ir trabalhar e não pode manter o cargo. Percorri toda a lista do PRD para o substituir e ninguém se mostrou disponível. Resumindo, dos nove vereadores iniciais acabei o mandato com sete. Tive que ficar com uma série de pelouros, quando o que defendo é o presidente não os deve ter. O presidente deve exercer uma função de representação, de coordenação da autarquia e de alguns projectos municipais. Foi o mandato que mais me custou e não desejo a ninguém o que passei naqueles quatro anos. Mesmo assim fizemos uma grande obra: a passagem desnivelada na Rua Miguel Bombarda. Depois passei para a presidência da Assembleia Municipal, que é um cargo também aliciante mas mais calmo. Agora sou deputado municipal e, para mim, representa uma experiência bastante diferente das outras pois passo a poder intervir directamente nos assuntos.
SR – 25 anos depois, como é que vê o poder local em Portugal?
HM – Hoje trabalha-se de uma forma diferente, os autarcas têm mais condições, mais profissionais e mais meios para realizar trabalho. As coisas mudaram também ao nível da forma como se vê o poder local. Hoje em dia é comum o chamado sistema de gestão empresarial, uma visão completamente diferente daquela que tínhamos no início. Acho que isso é negativo se acarretar, por exemplo, a constituição de empresas municipais porque estas acabam por ser factores de afastamento da autarquia da população. A essência do poder local são as pessoas, ou seja, a participação da população na gestão da vida do concelho. Dantes fazia-se uma gestão muito apaixonada e com o sentido do serviço à população. Não tenho experiência de trabalhar numa Câmara com o modelo de gestão empresarial mas posso dizer que prefiro, de longe, ir para a rua falar com as pessoas e discutir com elas o futuro porque é aí que conhecemos a realidade do concelho que gerimos.