ESTAR PRESENTE
por António Manuel Ribeiro
(músico e autor)
O estado da música portuguesa
No passado mês de Setembro foi apresentado um preocupante relatório sobre o “Estado da Música Portuguesa” ao Conselho Directivo da Sociedade Portuguesa de Autores, pelo seu Presidente Dr. Luís Francisco Rebello. Até Dezembro passado tive a oportunidade de pertencer a esse mesmo Conselho, o que me permitiu, entre outras acções, participar na mais ampla discussão sobre a criatividade e os direitos dos autores de música ligeira deste país.
Dessa reunião retive dois valores estatísticos, frios, certeiros e reveladores: em Setembro de 2001, as passagens de música portuguesa no universo radiofónico atingiu os 3,2 %, que é o mesmo que dizer Zero; as vendas baixaram 35 %, o que estava a deixar as editoras, independentes e multinacionais, à beira de um ataque de nervos, tendências que se vinham de há muito a diagnosticar.
Poderemos até concluir que, com o esboroamento do fenómeno pimba, primeiro, e das bandas de boys e de girls, depois, era inevitável que as vendas descessem. Pois era. Em contrapartida devemos ter o bom senso de perguntar que rádio (ou rádios) é esta que se ouve cada vez mais vinda do baú da história da música popular maioritariamente anglo-saxónica?
Começámos por ter, timidamente, uma Rádio Nostalgia, como acontece por essa Europa fora, o que até tinha piada e era compreensível: recordar o que noutros tempos a música nos deu. Porque a música popular é isso – marca os tempos das nossa vidas, a infância, a adolescência, os namoros, o tempo de aulas, os verões inesquecíveis –, a música popular cola-se a nós como se fosse um aroma feito pele, é nossa.
No oposto temos, primeiro as rádios nacionais, e agora, de fininho, as locais, copiando até à exaustão o modelo que começou a dar frutos (será verdade?) com a Rádio Comercial, ou seja, a qualquer hora do dia lá vem do baú da música canções com 10, 15 e até mais de 20 anos, umas atrás das outras, como se este tempo tivesse parado, o Regresso ao Passado fosse uma constante inevitável, e não houvesse música a marcar os dias de hoje, na sua utilidade de música popular.
Há dois exemplos que quero referir: no final de 2001, foram editados os novos discos de Elton John e de Paul McCartney, autores que, na minha óptica, dispensam apresentação. Não vou aqui defender a qualidade estética dos novos discos, porque cada um tem a sua própria visão soberana, mas foi curioso constatar que, por essa altura, ouviam-se temas dos mesmos artistas com 20 a 30 anos de história, ignorando-se os actuais. Com esta política estar-se-á a servir o público ouvinte que todas as rádios usam com o credo na boca? O facilitismo modelar a que chegámos está a descaracterizar a rádio que se faz e, um dia destes, cada vez mais, termos lá um locutor com playlist no computador ou só o computador, dá no mesmo
Quanto à música portuguesa o caso ainda fia mais fino porque, desde há largos meses, há artistas e grupos com discos gravados à espera de melhores dias para serem editados, o que resume um aspecto funcional do serviço radiofónico: a divulgação das obras gravadas. Só assim se cumpre a tarefa radiofónica, como veículo que faz chegar aos outros, que somos nós, o que os criadores na sua dúvida criativa engendraram. Poderíamos discutir se a culpa é das chefias de cada estação, dos próprios locutores, engraçados mas limitados, dos consultores americanos que seleccionam o lote das músicas que algumas estações executam ao quilo (a história de ouvirmos “Light My Fire” (1967) dos Doors, quatro vezes por dia não lembra ao diabo), até poderíamos discutir o sexo dos anjos e ficar por aí, sem dizer nada.
Poderíamos também perguntar ao ex-deputado José Niza, do PS, se se sente confortado com a lei que conseguiu fazer aprovar há 20 anos na Assembleia da República, de protecção à música portuguesa, mas que, curiosamente, nunca teve mecanismos para a fazer aplicar e, portanto, na prática não existe, porque quase ninguém a cumpre e nos torna mais próximos de uma república das bananas, mal comportados mas servilistas. Poderíamos também entrar pelo campo musical que as várias TVs exibem, os nichos onde se encostam as canções dos artistas, entalados por um concurso que dá frigoríficos e distribui piadas, e ficaríamos ainda mais tristes. Mas, como no futebol, onde o melhor é a redondinha e os jogadores, também na música, o melhor são as canções, os autores e os músicos.
(Na dica de hoje, ao sabor da escrita, um vinil de 1990 – “Songs For Drella”, de John Cale e Lou Reed, dedicado ao mentor dos Velvet Underground, Andy Warhol).