[ Dia 27-05-2002 ] – Gracieta Baião, ex-presidente da Câmara de Alcácer do Sal.

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Gracieta Baião – Acho que o convite surgiu por duas ordens de razões: a primeira teve a ver com o facto de eu ter sido vereadora do mandato de Arlindo Passos. Eu despertei muito cedo para a necessidade de mudança política. Filha de comerciantes num bairro de trabalhadores rurais do concelho, desde muito cedo assisti àquelas imagens que são descritas no livro de José Saramago, “Levantar do Chão”. Assim, despertei muito cedo para o problema das assimetrias sociais e de uma certa humilhação em que as pessoas viviam. Comecei a estudar tarde porque, sendo mulher, era suposto dedicar-me à casa e, tal como os meus irmãos, dedicar-me ao comércio que a família tinha.

Em 1969, muito à revelia do que eram as práticas da minha família, participei nas campanhas da CDE/Comissão Democrática Eleitoral. Em 1971 estive em Beja, onde tomei um maior contacto com a realidade do Alentejo e, pouco tempo depois, fui para a Escola de Enfermagem. Estava a terminar o curso quando ocorreu o 25 de Abril. Entretanto, tinha estado um ano afastada dos contactos políticos por razões de segurança e por causa da PIDE, relacionados, nomeadamente com a pessoa com quem eu deveria ter casado nessa altura. Não casei porque, supostamente, ele teve um acidente em Paris. Não foi acidente nenhum, pelo contrário, ele foi vítima da PIDE.   

Com o 25 de Abril vim do hospital de Setúbal para Alcácer ao abrigo do programa de Serviços Médicos à Periferia. Estava muito ligada a este concelho e às pessoas, pois conhecia-as todas. Continuei com a actividade política e embora antes de 1974 estivesse perto do PCP, depois dessa data andei perto de algumas organizações marxistas-leninistas, nomeadamente a UDP. Mais tarde o meu percurso no PCP faz-se basicamente devido ao trabalho que o partido fazia no terreno e a sua ligação às pessoas.

Para mim sempre foi fundamental que a teoria fosse acompanhada do trabalho prático realizado junto da comunidade. Comecei a trabalhar com pessoas do PCP, no concelho, mas só muito mais tarde é que preenchi a minha ficha de inscrição no partido. Fi-lo exactamente no dia das eleições legislativas que deram uma esmagadora maioria à AD.

A minha candidatura como vereadora vem por acaso, mas a segunda, para a presidência da Câmara, já surge na sequência do trabalho que vinha fazendo quer a nível político quer no contacto com as populações, que tão bem me conheciam, no âmbito dos cuidados de saúde.

SR – Se sempre se considerou uma pessoa contra-poder, porque é que aceitou ser candidata à presidência de um órgão de poder local?

GB – Convenceram-me a aceitar, dizendo que seria só por um mandato e eu achei que, com as outras pessoas, podia fazer alguma coisa por uma terra que é a minha. Sempre considerei o poder dos eleitos como poder delegado e foi com essa convicção que trabalhei, na prática com toda a população. Eu entendo que trabalhar numa autarquia como presidente ou como vereador não é mais nem menos importante do que estar numa comissão de moradores, num sindicato ou num outro qualquer organismo onde se possa participar como cidadão.

SR – O facto de ser mulher trouxe-lhe problemas na campanha?

GB – De facto, foi algo complicado. Naquela época havia apenas duas mulheres presidentes de câmara: Lurdes Pereira, do PSD, em Estarreja, e Francelina Chambel, do PS, no Sardoal. Fui a terceira mulher eleita para a presidência de uma câmara. Quando aceitei o convite pensei no assunto, coloquei a questão às forças coligadas na APU e aos diversos sectores da população mas toda a gente me incentivou. Tive de clarificar algumas questões porque, muitas vezes, fui confrontado com discursos do tipo: “tu és mulher e tens de ter pulso de ferro  e gerir as coisas como um homem”.

Eu quis deixar muito claro que, quer queiramos quer não, fui educada numa sociedade conservadora e, por isso, tenho comportamentos e formas de estar adquiridas pela educação que tive. As mulheres têm um outro tipo de sensibilidade – e eu sempre defendi isso em público – que, provavelmente, está relacionado com a educação que tiveram, pelo que eu não ia poder fazer uma gestão masculina. É preciso dizer que nunca senti qualquer discriminação pelo facto de ser mulher, embora na campanha eleitoral a oposição tenha tentado enveredar por esse caminho. Não conseguiu porque eu estava muito enraizada na população.

SR – Foi uma campanha difícil a de 1985, em que concorreu contra uma coligação entre o PS, o PSD e o CDS?

GB – Foi bem difícil porque a coligação era muito agressiva. O cabeça de lista era um conterrâneo meu, que muito bem conhecia: o então comandante dos bombeiros, João Bico. A campanha foi muitíssimo renhida e até mesmo com alguma violência verbal e física, sendo que esta manifestava-se bastante na destruição e queima dos cartazes de campanha da APU. Dado que o contexto internacional era dominado pelas grandes confusões que ocorriam nos regimes dos países de leste, acho que pela primeira vez a oposição pensou que podia ganhar à APU.

Os discursos e as acções de campanha eram todos virados para a realidade dos países de leste, mas nós dizíamos que nada daquilo tinha a ver connosco e muito menos com a gestão de um município. O trabalho da APU, nomeadamente do PCP, neste concelho, era reconhecido desde 1974, aliado ao facto das pessoas reconhecerem a ligação que eu tinha à comunidade, fizeram com que eu me sentisse à vontade nesta campanha.

SR – Ganhou as eleições com 59% dos votos contra 33,7% da coligação liderada pelo PS. Quais foram as suas prioridades para o concelho?

GB – A maior das prioridades foi a participação dos cidadãos nas decisões do município. Sempre fiz disso um ponto de honra porque era fundamental que os valores do 25 de Abril e a experiência de democracia que as pessoas conseguiram não ficassem por aí. E o exercício do poder local tem muito a ver com a partilha do poder, ou sendo este um poder delegado pelas populações, há que o devolver novamente às pessoas. Esta é a bandeira que ainda hoje defenderia se voltasse a candidatar-me, coisa que não vai acontecer. Uma outra prioridade era a da pacificação da sociedade alcacerense que continuava em ebulição por força do processo revolucionário.

Era normal que tal acontecesse num concelho como este, onde – provavelmente caso único no país – foram feitos saneamentos a nível da Igreja, bateu-se muito pelas questões da ocupação de terras e da implantação da reforma agrária. Acho que essa pacificação foi conseguida ao longo dos anos, pois fizemos questão de abrir caminho para todos os intervenientes na vida do concelho. Conseguimos pôr todas as instituições – desde as locais às centrais – a funcionar em conjunto e a partilhar ideias e projectos. Curiosamente, tive, por vezes, mais conflitos ou dificuldades com pessoas que supostamente deveriam estar ao meu lado em termos partidários, do que com instituições ou pessoas que inicialmente pareciam mais difíceis.

SR – Porque é que isso sentiu ‘resistências’ dentro do seu próprio partido?

GB – Acho que por razões de sectarismo e, provavelmente, um pouco pela imagem do que se passava nos países de leste: se quisermos podemos chamar-lhe a Nomenclatura. Não posso afirmar isso, mas parece-me ter sido. O certo é que, como é normal na sequência de um processo como o do 25 de Abril, estavam ligadas ao PCP pessoas que nada tinham a ver com o partido nem com a democracia e que nunca tiveram nada a ver com ideias de uma sociedade socialista em que o cidadão seja o centro de tudo. São os aproveitamentos que se fazem.

SR – Como é que lidou com uma oposição aguerrida?

GB – Durante o tempo que estive na Câmara mantive um excelente relacionamento com todos os vereadores. Mas foi uma oposição que nunca apresentou propostas nem alternativas. Sempre lhes distribuímos pelouros, alguns aceitaram mas mesmo assim não se via qualquer consequência prática do trabalho que deviam fazer. O mais engraçado é que o PS muitas vezes votava contra por ser contra enquanto o PSD optava pela abstenção. Neste caso eram pessoas que, de alguma maneira, reconheciam o trabalho que se fazia. 

Devo dizer que já no meu segundo mandato saiu legislação que dava aos presidentes de câmara poderes muito diferentes dos que detinham até então. O poder foi de tal modo reforçado que eu tomei, de imediato, a decisão de não voltar a recandidatar-me. Com a nova lei, o exercício do poder local deixa de ser um trabalho de equipa e o presidente passa a ser quase uma instituição. Lembro-me de que, para ultrapassar isso, algumas das coisas que passaram apenas para a decisão do presidente e sobre as quais o executivo não podia deliberar acabaram por ser levadas à Câmara.

Sempre tive o cuidado de levar esses assuntos à Câmara porque, apesar do executivo não poder deliberar, pelo menos tomava conhecimento e víamos se havia ou não objecções. Se houvesse qualquer objecção o voto era expresso. Isto porque sempre entendi que as pessoas tinham de participar. A alteração da lei foi um golpe para a democracia. Ou então mude-se a legislação e diga-se que o partido que ganha governa sozinho.

SR – Se esperava ser presidente apenas por um mandato, porque é que aceitou recandidatar-se em 1989?

GB – Mesmo com todas as dificuldades e erros cometidos, aquela experiência de trabalho com a comunidade foi extremamente aliciante. Fizemos muito trabalho em conjunto que vai para além da obra física. Por exemplo, criámos o Instituto das Comunidades Educativas , uma instituição absolutamente civil. De certeza que ficou muita coisa por fazer mas sei que foi conseguida esta tentativa de mostrar aquilo que deve ser o exercício do poder local, ou seja, um poder partilhado.

Depois era o grande desafio do desenvolvimento económico do concelho e a Câmara teve mesmo alguns custos políticos por causa de questões ligadas ao planeamento urbanístico. Mas acho que conseguimos preservar muito bem o concelho, de resto fomos das poucas câmaras com Plano Director Municipal (PDM), e aprovado com a participação da população.

SR – Em 1989 recandidatou-se, ganhou com 49,8% dos votos mas perdeu um vereador. O PS elegeu dois e o PSD um. Que projectos deixou em Alcácer do Sal, nos dois mandatos?

GB – É muito difícil enumerar obra porque o trabalho que foi feito veio de muito antes dos meus mandatos. Era um trabalho de continuidade do que vinha sendo feito desde 1974, no concelho. Em 1974, Alcácer não tinha estradas, a água e os esgotos existiam apenas na zona central da vila e as aldeias não tinham mesmo nada. As escolas eram poucas e centenárias. Foi feita uma enorme aposta na educação, no saneamento, no abastecimento de água e na electrificação, foram lançadas as bases para o parque industrial, os planos de urbanização e de ordenamento da Comporta, a recuperação do Castelo e continuados os trabalhos na área da habitação social.

Em 1974 os bairros proliferavam por todo o lado e foi logo nesse ano que o trabalho começou através da operação SAAL, Serviço Ambulatório de Apoio Local, com a construção de dois bairros. Criámos três modalidades: habitações a custos controlados, terrenos para auto-construção e construção de habitação social. Para além disso construímos infra-estruturas como estradas, caminhos municipais e estações de tratamento de esgotos. Foi um trabalho feito com a participação activa das populações e isso fez com que tivéssemos conseguido muita obra porque, como se calcula, as limitações financeiras e técnicas da Câmara eram enormes.

SR – Houve alguma obra que não conseguiu concretizar?

GB – Tive muita pena de não ter conseguido o desassoreamento e a limpeza do rio Sado que continua a ser um grande problema para o concelho.

SR – Em 1993 não se recandidatou por causa da legislação que conferiu mais poderes aos presidentes das câmaras. Como é que vê, actualmente, o exercício do poder local?

GB – Quando a legislação saiu, durante o segundo mandato, decidi que não me recandidatava por discordar completamente com a lei. E foi isso que fiz porque não via qualquer sentido naquela forma de dirigir um município. Para além disso não gostei da situação que se vivia, na altura, no partido, pois sentia que algumas pessoas sem cartão tentavam confundir as coisas. Por outro lado, desgostou-me imenso o novoriquismo e o neoliberalismo instituído no poder a nível nacional.

É cada vez mais necessário reflectir profundamente sobre as formas de exercer o poder e ver o que é que de bom a globalização tem trazido aos cidadãos. Hoje em dia as comunidades estão cada vez mais afastadas da gestão do poder, nomeadamente no poder local. Hoje em dia falta muito o exercício da partilha do poder e, por isso, é preciso que os autarcas não vejam o poder como seu mas sim como algo que lhes foi delegado pela população. Continuo a achar que isso é possível e a acreditar nos pressupostos da democracia. Podem chamar-me utópica mas eu continuo a lutar pelos valores que considero fundamentais numa sociedade mais justa e democrática.  seta-5579526