A história de Manuel Pereira confunde-se com a do Cine-Teatro São João (Palmela), que hoje completa 50 anos de vida. Começou a passar “As Aventuras de D. Juan” e desde 26 de Julho de 1952 que, noite após noite, tem acompanhado meio século de cinema e espectáculos. O projeccionista encartado é do tempo em que os filmes eram “bons”. Hoje, lamenta, são uma “chungaria”.
Depois de subirmos sete degraus íngremes, surgem mais quatro do lado esquerdo. Abre-se uma porta de metal, e, do outro lado, Manuel Pereira “acaricia” o par de máquinas de projectar Zeiss Ikon, as mesmas que nos últimos 50 anos têm levado o cinema ao Cine-Teatro São João, em Palmela. “Já não se faz disto”, diz Manuel Pereira, o projeccionista que comemora bodas de ouro, junto dos “mais modernos projectores que se instalaram em Portugal”. Por estes engenhos têm passado muitas das glórias do cinema nacional e mundial, mas o maior sucesso, depois de “As Aventuras de D. Juan”, foi o filme “Sansão e Dalila”. “Foi o que mais gostei, foi o que trouxe mais gente durante toda a semana” recorda.
Quando se pergunta a razão de tal sucesso, Manuel Pereira, 72 anos, não hesita em confrontar o cinema dos nossos dias, como o de “antigamente”. “Sansão e Dalila” tinha os ingredientes fundamentais, “bons actores, uma boa história, era um romance, e tinha um bom final”. Não há memória de um filme que tenha “enchido tantos autocarros, 20 ou 30”. O preço do bilhete de cinema, uma espécie de dois em um, assegurava o transporte das redondezas, em especial de Setúbal, Quinta do Anjo e Cabanas. “Naquele tempo vinha cem vezes mais gente ao cinema. As pessoas não tinham televisão, não tinham nada”, por isso, apreciavam a magia dos filmes.
O cinema não fazia parte dos projectos de Manuel Pereira quando, aos 16 anos, foi trabalhar para a Casa Humberto da Silva Cardoso, uma das famílias mais abastadas das redondezas. Ao completar o vigésimo aniversário, os patrões chamaram-no “para projectar no Cine-Teatro”. De electricista passa a projeccionista oficial, tendo obtido no Cinema Condes (Lisboa) a formação que lhe proporcionou a Carteira Profissional. Por essa altura sentiu-se contagiado pelo “escurinho do cinema”, esteve presente na “estreia do S. Jorge”, e passava muitas das suas folgas sentado em poltronas nas salas da capital. O mesmo pudor com que olha os filmes de hoje, já era sentido nas décadas de 50 e 60 – “Um dia fui ao S. Jorge, mas só lá estive até ao intervalo. Só via gajos nus e tinha uma rapariga ao meu lado, estava inibido. Resolvi sair”.
Hoje, Manuel Pereira tem alguma dificuldade em apreciar o cinema que se encontra no circuito – “a maior parte das vezes ponho a fita a passar e nem olho lá para baixo”. O projeccionista não se deixa impressionar pelos Spielbergeres, Scwarzenegeres ou Titaniques, já que não vê “quase nenhuns”. “O fim dos filmes deixou de interessar porque do princípio ao fim é tudo uma chungaria”. O cinema, crítica, perdeu “qualidade”. E o que dizer da sala do Cine- Teatro São João, muito aquém da lotação esgotada? O decano do celulóide distribui culpas pela “televisão e clubes de vídeo”, os inimigos do cinema. Enquanto alinha uma trailer na velha Zeiss Ikon, aproveito para perguntar, então e se fosse um herói do grande ecrã, quem escolheria? “Errol Flynn”. Porquê? “Era bom, bom artista. Era um artista”. Cine-Teatro São João – 26 de Julho de 1952, o dia de estreia
Do programa oficial das comemorações inaugurais destaca-se a presença das “entidades oficiais”, o filme de estreia em “technicolor”, e as passagens de autocarro asseguradas a todos os que viessem de Setúbal, Quinta do Anjo e Cabanas. 50 anos depois de ter sido afixado, o cartaz de promoção é revisitado nos próximos parágrafos.
Os Convidados – Pelas 16 horas do dia 26 de Julho de 1952 foi realizada a “Inauguração oficial com a assistência das entidades oficiais, civis e imprensa”. Os registos da época assinalam o corte simbólico da fita pelo “comandante militar de Setúbal, coronel Ribeiro da Silva, e usaram da palavra o Dr. Pinto Assalino, notário em Palmela, P. Manuel Caetano, pároco da freguesia, e Carlos da Costa Frescata, impulsionador da indústria de salsicharia”.
As produções de estreia – As Aventuras de D. Juan, foi o primeiro filme projectado no Cine-Teatro São João, às 22.15 horas. Uma “super produção em technicolor” e, note-se, “superiormente desempenhado” por Errol Flynn ao lado da famosa artista sueca Viveca Lindfors e de Alan Hale.
A primeira revista – No dia seguinte à estreia, o palco do Cine-Teatro recebeu a “alegre revista alemã” que, na altura, fazia imenso sucesso. Que pernas ela tem!, contou com a presença da “grande bailarina Maria Litto e o conhecido actor Willy Fritsch e as 100 mais belas bailarinas alemãs”. Um espectáculo “gentilmente cedido pelos Exclusivos Triunfo, antes da sua estreia na cidade do Porto”.
Transporte assegurado – No cartaz que promove o programa inaugural, fica em rodapé uma originalidade: “A gerência pede a todos os Exmos. Clientes em Setúbal, o especial favor de participarem ao Sr. Mário Barrocas, na “Transportadora Setubalense”, se pretendem utilizar os transportes para esta Cidade, depois dos espectáculos. As marcações para sábado, para os clientes de Setúbal, serão respeitadas até sexta-feira, às 21 horas, no mesmo indivíduo e local (Praça do Bocage, “Transportadora Setubalense”). Para domingo, até sábado à mesma hora. Seguramente, uma experiência pioneira dos bilhetes multi-serviço…