• 30-07-2002 • |
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Um designio
Português
Ando por aí a subir e a descer o país, enquanto os fogos lavram, os bombeiros se esfalfam, as falhas do costume são apontadas e o fado se instala.
Seja numa auto-estrada ou nas ruas das cidades por onde passo, onde vivo, vejo portugueses metidos em carros, apressados, sempre apressados, jogando todo o tipo de lixo pela janela do carro: maços de tabaco, beatas, latas, garrafas, papéis, restos de fruta, sacos com lixo, escarros, whatever; seja o carro um utilitário ou uma bomba de alta cilindrada, são portugueses de todas as idades, apressados e porcos, sem educação, sem formação, virados para eles, o centro de um mundo tão arrogante quanto medíocre e mesquinho. A prova está aí, na berma de cada estrada ou rua. É a dimensão nacional de um povo, que os políticos, de qualquer cor governamental, escamoteiam, disfarçam, fingem, cantando loas a uma estirpe que não distingo à minha volta.
À mesa, sentados à mesa do restaurante, adquiriu-se o jeito defeituoso de fincar os antebraços na beira da mesa e levar a boca ao garfo, em vez de elevar a comida ao nível da boca. São os mesmos cidadãos que, ao saírem de uma cantina de fast food, olham para os filhos e batem de satisfação na barrida cheia – parecem amaricanos, por alguns minutos, como nos filmes.
E todos vão a caminho do sul, por esta altura, finalmente por uma prometida auto-estrada que nos dá um Algarve mais rápido.
Na conclusão desta via morreram 13 homens, dois deles na véspera da sua inauguração. É o preço, o nosso preço, para uma definição terceiro-mundista de progresso, valha isso o que valer.
Num país de impunidade, a começar pelo Estado e seus funcionários, vivam os nossos empreiteiros e os seus métodos. De tantas mortes laborais se vai tornando adquirido que há-de ser sempre assim – como um desígnio.
Benfiquista
Os benfiquistas estão adormecidos, feridos, mudos, por anos de insucesso e velas de esperança. Na ânsia de vitórias tudo aceitam, nada investigam, preferindo justificar os resultados, apostando pela oitava vez que agora é que é.
Um dia tivemos um presidente-trolha que ergueu o resto de um estádio megalómano, numa altura em que a Europa civilizada fazia o contrário – estádios médios, pequenos, mas confortáveis.
Venceu eleições, ganhou uns troféus e adubou o declínio de uma equipa de futebol que, por não ser temida nem ganhadora, mantinha o estádio às moscas. Também era empreiteiro (profissão sem grau académico) e o futuro, para o senhor, fazia-se de “vontades inspiradas” (leia-se manias), que é sempre o resultado de uma política falhada – sem desígnio.
Às vezes há quem se lembre dele. Foi assim durante os consulados do sr. Santos, do sr. Brito, do sr. Damásio “Charuto” e do sr. Azevedo, esquecendo a tribo que o senhor Martins nos deu, a certa altura, sacos de cimento por avançados.
No ano passado, outro senhor de apelido Vieira, prometeu-nos uma equipa maravilha, feitos e glórias. Acabámos a primavera em 4º. lugar. A proximidade do Mundial amoleceu o desânimo e as críticas, transferindo a ansiedade de vitórias para os Tugas de uma nação. Como se sabe, ficámos cobertos de ridículo. Diz agora o Figo que cada um tem o que merece. Nós ou ele?
Esquecidas que estão as promessas passadas, um novo ano começa com novas promessas. Faz parte do futebol este masoquismo. É um desígnio.
Pedofilia
O Papa João Paulo bem se esforça mas a torneira está aberta e a inundação de escândalos vai modificar dramaticamente os horizontes dos católicos apostólicos romanos.
Para uma confissão que apostou no celibatarismo como profissão de fé e superior desígnio, distorcendo a realidade do homem e da mulher, tratando as coisas do sexo como algo sujo e diabólico (foi esta igreja que um dia inventou a personagem habilidosa do Diabo), já não chegam os dedos e as rolhas da censura para estancar o dique da grande mentira que a sua pesada, poderosa e obscura organização de lacaios engendrou, em concílios de lapidação da verdade e da justeza, erguendo o dogma e a blasfémia como verdade inquestionável e culpa imperdoável.
Só uma igreja fechada num labirinto de códigos contra-natura podia inventar um actor chamado Diabo e um teatro chamado Inferno, usando exactamente o fogo como desígnio da Inquisição. Por tudo isso, pelas suas frágeis competências, falhou a transformação do homem, proliferando hoje dezenas de seitas suas derivadas, autênticas empresas de serviços pagos.
Primeiro foram os Estados Unidos. Agora o Canadá. Como o Papa João Paulo sabe e disso deixou indicações – exultando os milhares de jovens presentes em Toronto a não abandonarem a sua igreja – será a vez da velha Europa, incluindo Portugal, ser atingida pelo escândalo pedófilo, apesar do esforço que tem sido feito para evitar a verdade – um desígnio, como mentira.
Pergunto-me: que diria Jesus, o Cristo, judeu e profeta da Palestina, destas diatribes de uma igreja que ele nunca preconizou e que usa o seu nome em nome de tudo? Aceitaria esta igreja das sombras o profeta Jesus de há dois mil anos atrás?
Aroeira, 29 de Julho de 2002
(Em escuta o CD “Stockholm” de Jean-Louis Aubert (1997) da Virgin Records, com quem tive o prazer de tocar no ano de 1981 em Portugal – Telephone / UHF)