Setúbal na Rede – Como surgiu na lista da FEPU em 1976?
Carlos Maurício – Quando se deu o 25 de Abril eu tinha trinta e dois anos e era director administrativo da Norma, uma empresa de informática, actividade que acumulei com várias funções na Comissão Administrativa, da qual fiz parte com mais dezoito elementos. Nas primeiras eleições entendi que poderia contribuir com a experiência que tinha adquirido e é nesse sentido que me disponibilizei para pertencer à lista da FEPU.
SR – Como foi o primeiro impacto ao tomar posse como vereador depois dessas eleições?
CM – Em primeiro lugar senti que era uma grande honra estar naquele cargo. Nenhum de nós tinha experiência autárquica, pelo que eu sempre achei que era uma grande responsabilidade estar numa posição em que tinha de contribuir para resolver os problemas das pessoas, com os meios das próprias pessoas. A questão de termos um cargo público para a gestão da causa pública, com meios públicos, é de extrema responsabilidade, sendo que considero que este foi o cargo de maior responsabilidade que já ocupei até hoje, o que me marcou muito. Este foi um período de grande acção e participação das pessoas o que me ajudou a consolidar a minha formação cívica. Para mim, os cargos públicos têm que ser assumidos com rígidos princípios de ética, com grande dignidade e eu penso que tenho feito isso ao longo dos anos.
SR – Que pelouros ocupou nesse mandato?
CM – Eu comecei com o pelouro das obras municipais, água, saneamento e higiene urbana. Depois estive nos espaços verdes, no planeamento urbanístico, na informação e relações públicas, na protecção civil, enfim já passei quase por todos, inclusivamente pelo conselho municipal de segurança e pela gestão administrativa. Eu acabei por ter, dentro da Câmara, um conhecimento amplo, não só do trabalho autárquico mas também administrativo, e o ensinamento que retirei daqui, é que os serviços devem ser criados a partir das necessidades das pessoas e não serem criados só por criar, o que não é fácil.
SR – Quais foram os principais desafios que se lhe colocaram?
CM – Em 1976 o Barreiro já tinha uma grande importância, não só ao nível local como do país, pelo que a Câmara já tinha um engenheiro nos seus quadros. Nesse período procurámos definir as necessidades básicas que abrangiam principalmente o abastecimento de água, esgotos, transportes, arruamentos e electrificação, ou seja, aquelas necessidades básicas para a melhoria da qualidade de vida da população. Por outro lado, existia também a preocupação de estruturar os serviços municipais de modo a corresponder a estas necessidades da população e fazê-lo de uma forma muito participada pelos trabalhadores. Para aumentar a produtividade dos trabalhadores, um ponto fundamental para a prestação de um bom serviço público, era necessário melhorar as condições de trabalho dos funcionários e essa foi outra das nossas preocupações. Além de darmos condições de trabalho, procurámos integrar os colaboradores nas decisões tomadas pelo executivo. Além do que já referi, atendendo ao crescimento desordenado que o Barreiro estava a ter, foi necessário criar um plano de ocupação do solo que fosse mais ordenado. Alguns destes objectivos foram atingidos.
SR – Na altura era fácil conseguir participação, mas como é que tudo se processava relativamente aos meios?
CM – De facto a participação era mais fácil, quer por parte da população, quer por parte dos serviços, isto apesar de no início as pessoas estarem um pouco desconfiadas, mas acabaram por perceber que estávamos ali para resolver os problemas em conjunto. Já os meios eram extremamente escassos. Devo dizer que, na altura, as autarquias não tinham qualquer autonomia financeira, pois a lei das finanças locais surgiu muito mais tarde. É também importante registar que o Barreiro sofreu uma grande crise no início dos anos oitenta, porque houve algumas empresas que despediram trabalhadores, como a Cuf e a Setenave, que empregavam muitas pessoas do Barreiro, o que veio a ter repercussões muito graves na região e consequentemente no trabalho da autarquia. Porém, conseguimos ultrapassar esses momentos. Houve alturas difíceis, em que, por exemplo, os transportes públicos do Barreiro só funcionaram porque se fez uma colecta que rendeu cerca de oitenta contos e que serviu para pagar o gasóleo.
SR – Como era feita a participação na vida autárquica dos imensos partidos que surgiram na altura?
CM – Essa é uma questão pertinente porque hoje tenta-se, tanto a nível nacional como local, apagar o que foi o pós 25 de Abril e eu penso que quando se pretende apagar a nossa história se está a cometer um crime. Com isto quero dizer que já quando foi criada a Comissão Administrativa existiam tendências políticas, apesar de não existirem partidos e as pessoas trabalharam colectivamente durante aqueles dois anos. A partir dessa altura, em todos os mandatos, houve a participação de todas as forças políticas, com pelouros atribuídos e aprovados por unanimidade na Câmara do Barreiro.
SR – Apesar da maioria absoluta da FEPU e depois da APU?
CM – Exactamente, e com a distribuição dos pelouros aprovada por unanimidade. Houve a participação de todas as forças políticas, primeiro o PS, depois o PSD e o único mandato em que isso não aconteceu foi em 1994/98 porque o PS não aceitou pelouros. Eu penso que a lei da proporcionalidade deveria ser mantida e ser considerada como uma conquista do 25 de Abril, para que todas as forças políticas possam estar representadas no poder.
SR – Em 1979 foi novamente eleito vereador mas desistiu um ano depois. Porquê?
CM – Eu tinha a minha vida profissional estruturada de determinada maneira, entendi que deveria contribuir para a resolução dos problemas do Barreiro e dei essa contribuição. Posteriormente, tendo ajudado a criar estruturas que permitiam evoluir ao nível da própria estruturação dos serviços municipais, foi acordado com o meu partido, o PCP, que ficaria apenas alguns meses desse mandato e depois daria lugar a outro vereador. A minha saída foi acordada e eu voltei a exercer a minha profissão.
SR – Nesses três ou quatro anos em que esteve como vereador, foram colmatadas as principais necessidades do concelho?
CM – Não foram as principais, mas muitas foram resolvidas, nomeadamente as necessidades mais básicas. Foram também criadas estruturas municipais que permitiam dar resposta aos problemas dos munícipes e foi criada uma estrutura de planeamento, com técnicos capacitados que permitia progredir. Este foi o período mais rico da minha vida em termos de participação na actividade cívica.
SR – Regressou ao cargo de vereador catorze anos depois. O que veio encontrar de diferente na Câmara?
CM – Em primeiro lugar, o Barreiro já estava diferente. A intervenção da Câmara na vida local foi importante, a região melhorou, evoluiu e quando cheguei à Câmara encontrei serviços organizados e estruturados de outra forma. Nessa altura encontrei condições para que pudéssemos dar resposta aos munícipes de uma forma mais efectiva.
SR – As prioridades eram outras?
CM – As prioridades eram outras, as necessidades básicas tinham sido resolvidas, e agora era necessário criar projectos estruturantes para o concelho. Houve alguns exemplos importantes, como é o caso de acabar com a lixeira de Coina e avançar para a construção do aterro sanitário, construir a via rápida, o hospital distrital, um projecto ao qual estive ligado, arranjar dinheiro para a construção de escolas e de centros de saúde. Foram projectos que permitiram melhorar as condições de vida. Arranjar as estradas do concelho e melhorar a rede de abastecimento de água foram prioridades iniciais. Depois existiam outras coisas que era necessário fazer, como a aquisição de equipamentos colectivos, onde se pode integrar o parque da cidade, a biblioteca municipal, o projecto de construção da ETAR e a Escola Superior de Tecnologia do Barreiro, todos eles projectos de desenvolvimento para a região. Os projectos de urbanização planeada e equilibrada eram também uma das prioridades que se colocava em 1994.
SR – O que o fez voltar à Câmara catorze anos depois?
CM – Por trás de tudo há um grande amor pelo Barreiro. Além disso, a minha experiência profissional aliada à experiência autárquica do pós 25 de Abril deram-me um conjunto de conhecimentos que me permitiram evoluir e acreditar que tinha condições para fazer uma intervenção diferente na Câmara. Foi esse desafio que me fez voltar, com a intenção de dar um melhor contributo que o anterior à autarquia barreirense.
SR – Outro desafio que se lhe coloca é o facto da CDU deixar de ter maioria absoluta no ano em que é eleito.
CM – Essa foi uma forma diferente de trabalhar, onde o equilíbrio e o consenso teriam de ser encontrados por outros meios. Aqui penso que se provou mais uma vez que é importante ter várias forças políticas numa Câmara Municipal e foi possível para a CDU evoluir e desenvolver o Barreiro numa posição de maioria relativa. Foi uma experiência interessante e não tive problemas em trabalhar com essa maioria relativa.
SR – Com todos os cenários diferentes e com diferentes equilíbrios, quais foram as grandes diferenças de actuação nestes dois períodos?
CM – Em relação à minha forma de estar e de actuar não houve qualquer alteração. A forma como eu entendo o desempenho do cargo político ao serviço da população é igual, pelo que a forma de trabalhar também é a mesma. Provavelmente, terei consolidado mais esse modo de estar, por estar cada vez mais convicto que é a forma mais correcta de estar na política. Naturalmente que também verifiquei algumas diferenças, particularmente a lealdade que existia logo a seguir ao 25 de Abril, pois muita deixou de existir entretanto e isso foi um choque para mim, bem como o surgimento da política espectáculo. É claro que tive que me integrar nesse meio, mas nunca o aceitei muito bem porque acho que é importante dignificar a actividade política.
SR – Após dois mandatos como vereador, o que o leva a concorrer à presidência?
CM – O que me levou a concorrer foi ter entendido, bem como o PCP e alguns barreirenses, que tínhamos atingido uma etapa de desenvolvimento do concelho que podia progredir de forma diferente. O nosso programa teria sido importante para o Barreiro se tivesse sido colocado em prática, era um programa coerente que fomentava a sua aplicação na participação organizada da população e dos agentes. Por outro lado, tinha planos de actuação em várias áreas, como o desenvolvimento económico, a cultura, o ambiente, com projectos bem definidos. Esse programa foi feito com a participação dos candidatos e também dos agentes locais que viram transferidos para esse programa, aqueles que eram os seus objectivos. Eu pensei que estávamos numa nova etapa do Barreiro e que podíamos contribuir com o nosso projecto para um desenvolvimento mais sólido e mais coerente da nossa terra.
SR – Porque perdeu as eleições?
CM – Não sei. Talvez nós não tivéssemos tido a possibilidade de fazer chegar a todos os barreirenses a importância do nosso projecto. É necessário frisar que perdemos por sensivelmente trezentos votos, não foi muito, mas a verdade é que perdemos. Por outro lado, depois de dez meses de gestão autárquica do PS na Câmara, estou perfeitamente convicto de que perdemos porque houve uma campanha completamente demagógica do PS, com propostas e promessas completamente irrealistas, que de alguma forma utilizaram a população naquilo que eram as suas preocupações profundas, em conjunto com alguma falta de informação. Vamos ver o que vai acontecer, mas permita-me que diga que o papel da comunicação social também deve ser o de confrontar os políticos com as suas promessas, com os seus projectos e tentando perceber o que conseguem fazer na realidade para detectar as faltas e auscultar a população. Esta é uma interacção essencial e penso que o tempo se vai encarregar de mostrar a realidade. Acredito que o PS não tem um projecto coerente para o desenvolvimento do Barreiro, tem algumas acções e ideias mas sem a coerência que CDU tem no seu programa de desenvolvimento do concelho.
SR – Esteve pela primeira vez como vereador na oposição, que diferenças encontrou no cargo?
CM – Eu assumi um pelouro com a mesma responsabilidade que assumi anteriormente, a forma como actuei e participei nas reuniões de Câmara foi exactamente igual. Penso que tenho sido coerente e para mim a coerência é tentar defender os princípios em que acredito nas práticas diárias, tentar que os valores da ética e da verdade se reflictam no meu trabalho. Tentei sempre ser coerente, quer com os trabalhadores, quer com os eleitos e com todos os que trabalham comigo. Porém, encontrei algumas dificuldades que provinham da forma de gestão autárquica da Câmara PS. Não vou entrar em pormenores, mas o que me levou a renunciar ao mandato prende-se com questões de nível pessoal, situações da vida às quais é necessário dar mais atenção, mas também ao desgaste que tenho sofrido devido às práticas autárquicas do PS. Além disso, não me estava a ser permitido ter a mesma intervenção na autarquia que eu sempre quis e que tinha a ver com o desenvolvimento das minhas capacidades de trabalho em prol do concelho. A dada altura foi difícil conciliar a minha forma de estar na política com a gestão que existe na Câmara do Barreiro.
SR – Em vez de renunciar não poderia abdicar do pelouro e ficar apenas a fazer oposição?
CM – Eu gosto de trabalhar, acho que o trabalho dignifica o homem. Eu sempre exerci o cargo político de corpo inteiro e só o consigo exercer assim. Como não tive condições para o fazer, renunciei. E só renunciei porque entendi que tinha que haver coerência e não poderia estar a defraudar a confiança que muitos barreirenses depositaram na CDU. Eu não estava a conseguir desenvolver o meu trabalho, nem gerir a minha vida familiar de modo a encontrar o equilíbrio que me permitisse dar aos barreirenses aquilo a que têm direito. Por eu querer estar como vereador de corpo inteiro é que renunciei ao mandato e não apenas ao pelouro. Não quero com isto dizer que os vereadores que não têm pelouro não possam intervir na vida da autarquia, no entanto eles assumiram já a sua posição e podem constituir de facto uma oposição construtiva, como já aconteceu quando a CDU estava no poder. Uma coisa que esta maioria também não reconhece é o trabalho que foi feito anteriormente e nós temos que ter respeito pelo trabalho uns dos outros, quer dos trabalhadores, quer de todos os eleitos e devemos valorizá-lo ou criticá-lo quando é necessário. Foi realmente para manter esta minha coerência política que eu renunciei ao mandato.
SR – Mas o que é mais coerente, participar activamente num pelouro do projecto de outra maioria ou fazer oposição?
CM – Eu acho que são compatíveis essas duas posições. Eu tenho um projecto para o Barreiro que é aquele que foi apresentado pela CDU, porém isso não implica que os projectos de outras forças políticas não sejam válidos. Eu devo fazer oposição àquilo que contraria o meu projecto e que depois de uma discussão mais reflectida eu entendo que não é solução para o Barreiro. Logo, devo apresentar soluções alternativas, que podem ou não ser aceites. Eu fiz algumas propostas que foram aprovadas por unanimidade. Não coloco essas duas questões em oposição, não considero que devemos estar sempre contra aquilo que não faz parte do nosso projecto porque isso não é uma oposição coerente.
SR – Vai voltar a concorrer?
CM – A minha renúncia ao mandato é um processo perfeitamente transparente e acompanhado pelo partido. Mandei uma carta aberta aos barreirenses para dignificar a política e evitar o espectáculo. Eu pretendo continuar a intervir na CDU se encontrar formas de o fazer. Para mim, foi extremamente gratificante trabalhar na autarquia, foi quase um privilégio. Trabalhar para o bem público, tentar compreender os problemas das pessoas e depois tentar resolver esses problemas em conjunto com elas é uma grande responsabilidade. Eu costumo dizer que na minha casa gasto como entender, mas quando se trata de bens públicos tenho que ter mais cuidado e é essa responsabilidade que eu penso que muitos dos nossos políticos não têm. Para mim essa noção de serviço público contribuiu para tornar a minha formação cívica muito maior e mais sólida.
SR – Mas é uma porta fechada?
CM – Não sei se é uma porta fechada, pois eu acho que na vida nunca devemos ter portas fechadas. Para tudo na vida há uma saída e nós temos que a encontrar sozinhos ou colectivamente. Eu penso que a participação das pessoas é essencial.
SR – Que balanço faz dos quase 26 anos de poder local democrático.
CM – Eu penso que valeram a pena, o Barreiro progrediu, os barreirenses hoje têm melhor qualidade de vida. Penso que o poder local democrático se consolidou na generalidade ao longo destes anos. Concretamente no Barreiro, acho que se conseguiu encontrar uma forma dos munícipes intervirem directamente na procura de soluções para os seus problemas. Porém, 26 anos de poder local é o tempo que separa uma geração, é muito pouco na vida de um povo para consolidar a democracia, ainda que eu considere que no Barreiro e no país em geral tenhamos conseguido consolidá-la de alguma forma. No entanto, penso que existem riscos e perigos para a democracia, nomeadamente com a actual alteração das leis laborais que eu espero não se venha a concretizar. A participação de todas as forças políticas é essencial nos órgãos de poder local. Em resumo penso que estes últimos 25 anos valeram a pena.