• 14-02-2003 • |
ASSENTO PARLAMENTAR |
Afinal o Serviço Nacional de Saúde
ainda tem quem o defenda!!
Optei por abordar, neste artigo, a greve dos médicos. Talvez nunca se tenha assistido a uma tão grande demonstração de desagrado, por parte destes profissionais, relativamente a medidas legislativas. Os níveis de adesão à greve foram, sem dúvida nenhuma, os mais elevados de sempre nos Centros de Saúde. Penso que esta constatação justifica a opção.
A análise desta mobilização tem merecido opiniões contraditórias que, em geral, pretendem defender um lado do problema e uma visão unilateral sobre o fenómeno. Se pensarmos aprofundadamente sobre o que se passou, verificamos a complexidade das relações e interesses em causa, e como eles se encontraram num momento específico, apesar de divergentes.
Assim, encontramos várias posições que justificam a adesão à greve: – Há os que defendem o Serviço Nacional de Saúde por convicção profunda, que entendem que o SNS é a forma mais democrática, equitativa e justa de prestar cuidados de saúde aos cidadãos, mesmo que lhe reconheçam imensos defeitos, neste actual modelo de funcionamento e gestão. Estes muito naturalmente aderem para defenderem os seus ideais de justiça. – Outros não defendendo os princípios de justiça, apoiam o status quo pois, a gestão e funcionamento actuais, permitem uma promiscuidade entre os serviços públicos e privados. São os que estão com os pés nos dois campos e naturalmente beneficiam da duplicidade de actuações, muitas vezes parasitando o SNS. Estes são os que aderem pois prevêem que o patrão privado terá critérios muito apertados e não trocam o certo pelo incerto.
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Outros defendem a sua carreira, pois ela, para além de significar o esforço de formação que os tornou especialistas numa perspectiva familiar, também corresponde a um estatuto técnico e social, e até uma dignidade que a proposta do ministro vem ofender. Apesar de centrada em si mesmos, os que se colocam nesta posição, defendem princípios quanto à qualidade dos cuidados e recusam que a mão de obra indiferenciada, e portanto mais barata, os substitua.
Haverá outros interesses particulares, mas estas são as posições de base que permitem ver que, apesar de grandes diferenças e motivações, é possível reunir na mesma luta pessoas com opiniões diversas.
Não colhem, pois, análises simplistas que tentam pôr os interesses dos médicos todos no mesmo saco, e que com argumentos populistas dizem que os médicos são para dar consultas e não têm que se meter a dar opiniões sobre as leis. Advogam que os médicos não deveriam fazer greve pois prejudicam os outros cidadãos doentes. Estas posições são desvitalizadoras da democracia, no seu sentido mais nobre, que é o da participação nas decisões que nos envolvem. Naturalmente que as greves em serviços públicos irão prejudicar o público no imediato. Mas o que nos devemos perguntar, é se a longo prazo os ganhos para os cidadãos em geral, serão maiores ou menores. A resposta a esta questão é que deve motivar a nossa aprovação ou reprovação da greve. Vejamos então o caminho que o ministro aponta e as experiências semelhantes que existem no mundo, para depois enquanto cidadãos nos pronunciarmos.
Comecemos pelo caso do suprassumo da privatização dos cuidados de saúde que é representado pelos Estados Unidos. Neste país que tem os maiores recursos em todo o mundo, verificamos que cinquenta milhões dos seus cidadãos não têm direito a quaisquer cuidados de saúde entre os quais cerca de catorze milhões de crianças. A cidade de Nova York, capital da finança mundial, tem níveis de vacinação mais baixos que muitos países subdesenvolvidos de África. Na classificação da Organização Mundial de Saúde os Estados Unidos encontram-se num vergonhoso 37º lugar quando são os que mais gastam em todo o mundo. Alguns dirão que comecei logo pelo exemplo mais gritante da degradação do neo-liberalismo.
Tomemos então o caso da Inglaterra que há doze anos ocupava o primeiro lugar na classificação da Organização Mundial de Saúde, quando se iniciaram as medidas semelhantes às propostas pelo nosso ministro da Saúde. Actualmente encontra-se em 24º lugar, muito atrás de Portugal, que ocupa um honroso 12º lugar, apesar dos problemas que todos reconhecemos no funcionamento do Serviço Nacional de Saúde. Apesar de se falarem nas listas de espera, verificamos que em geral os problemas que realmente são de vida ou morte recebem tratamento no nosso país. A título de exemplo, neste momento, em Inglaterra, as listas de espera aumentaram cinco vezes e uma criança a quem seja diagnosticada leucemia, precisa de esperar cerca de um mês e meio enquanto no nosso país esse tratamento é imediato.
E que mais se verificou em Inglaterra? A mais importante transformação foi a mudança dos patrões dos serviços de saúde. Neste momento o sistema financeiro, em particular através das seguradoras, domina o sistema, degradou os cuidados, os salários dos profissionais, piorando as condições de trabalho e exploração.
É este percurso que não devemos querer para os nossos serviços de saúde. Ao lutarmos todos contra os projectos deste governo estamos a defender no futuro, menos doença, mais qualidade e mais esperança de vida para os portugueses.
Se o ministro quisesse, de facto, melhorar a situação, deveria alterar o que prejudica efectivamente os serviços de saúde públicos: a promiscuidade entre o publico e o privado, a definição estratégica da evolução dos serviços nas malhas dos laboratórios e o desequilíbrio estratégico (inversão) entre os Cuidados de Saúde Primários e os Cuidados Hospitalares. Naturalmente que Luís Filipe Pereira tem como encomenda a entrega dos serviços públicos aos grupos financeiros e esse é o seu objectivo único. Se não conseguir convencer pelos argumentos vai utilizar o velho argumento da força. Contra a força também é preciso juntar força aos argumentos. Esta greve de médicos foi um início. Esperemos que esta posição, para não poder ser apontada como elitista, seja alargada a outros profissionais de saúde e também aos utentes da saúde.
A defesa da saúde dos portugueses merece!!