CRÓNICA DE OPINIÃO
por Inácio Videira
(Animador Cultural)
Carlos Paredes:
uma guitarra que não se cala com o silêncio
Servem estas linhas para homenagear um amigo, que a par de outros como, por exemplo, José Afonso, Lopes-Graça e Adriano Correia de Oliveira, tem uma vasta obra que, não sendo pertença de ninguém em particular, é património de todos nós. Refiro-me a uma figura marcante da cultura em Portugal, que soube sempre aliar a intervenção cívica à promoção da música por meio da sua actividade incansável. Estou a falar exactamente de Carlos Paredes!
Carlos Paredes – Mestre da Guitarra Portuguesa – completa 78 anos de vida a 16 de Fevereiro. Este artista singular encontra-se acamado desde 1993,, devido a uma mielopatia crónica; doença que lhe afectou a espinal-medula paralisando-lhe os movimentos e impossibilitando-o de continuar a criar.
Carlos Paredes, ainda criança, iniciou os estudos de violino e piano que abandonaria mais tarde para se dedicar à guitarra portuguesa, prosseguindo e renovando uma antiga e rica tradição de família.
Com Carlos Paredes, a guitarra portuguesa deixa então o seu quase fatalista papel de secundário acompanhante e passa, de forma exuberante e criativa, a assumir-se como instrumento concertista.
Pode dizer-se que Carlos Paredes realizou recitais em todo o mundo. O prestígio do artista alcançou o mais elevado posto, nomeadamente em Espanha, Brasil, E.U.A, Japão, Alemanha, Cuba, Austrália, Itália, Índia, China, Marrocos, Senegal, Cabo Verde, Moçambique, Filândia e Coreia do Sul. Salas como as do Rockfeller Center e do Shakespeare Theatre nos E.U.A, Olympia, Bobino, Théâtre de la Vile em Paris e a Ópera de Frankfurt na Alemanha, viveram, com Carlos Paredes e a sua música, noites de memorável emoção.
Para o cinema compôs bandas sonoras das quais merecem especial destaque “Verdes Anos” e “Mudar de Vida”.
Fez igualmente música para inúmeras peças de teatro, de onde se destacam “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires e o “Gebo e a Sombra” de Raul Brandão para o Teatro Nacional D. Maria II.
De várias experiências no campo do Jazz tem particular relevo a sua colaboração com o contrabaixista Charlie Haden, que culminaria com a realização de um CD gravado em Paris.
“Danças para uma Guitarra” marca a colaboração de Carlos Paredes com o bailado. Refira-se a inspirada coreografia levada ao palco pelo Ballet Gulbenkian baseada na sua criação musical como mais um marco na carreira do Mestre da Guitarra Portuguesa.
Pertenço a uma geração que cresceu, lutou e sonhou com a música de Carlos Paredes. Na verdade, ele interpretou, melhor que ninguém, os sentimentos, o sofrimento, a revolta e a esperança dos portugueses.
Paredes, contribuiu para a pedagogia democrática; a generosa colaboração com os outros em busca de valores e sentido de vida; desde o tempo em que a sua música, ligada aos grandes combates pela liberdade, se impunha já como uma das mais importantes referências da nossa cultura.
Não será demais recordar que, ao longo dos tempos, a acção de Carlos Paredes tem sido para muitos de nós – faço com orgulho a afirmação no plural – uma referência de luta contra o vedetismo, o individualismo e o “salve-se quem puder”. Com a sua arte de grande singularidade cruzou-se com outras artes, enriquecendo-as: o cinema, o teatro, as artes-plásticas, a poesia e o bailado.
A sua guitarra, mesmo sem o suporte ou a associação com as palavras, tem sido capaz de dizer, ao longo de várias décadas aquilo que as palavras, só por elas, são frequentemente incapazes de transmitir.
Foi sempre um cidadão interventivo, nunca foi indiferente ao que se passava em seu redor. Em consequência dessa determinação, de lutar contra qualquer injustiça, veio a ser detido pela sinistra polícia-política do anterior regime, em Setembro de 1958; em 1960 foi expulso da Função Pública, sendo reintegrado no Hospital de S. José, apenas em Outubro de 1974, no Serviço de Arquivo de Radiologia.
Neste momento, em que uma vasta maioria dos portugueses está a passar por momentos difíceis, e ao mesmo tempo em que nos querem impor valores que não são nossos, é também o tempo em que se fabricam vedetas que na sua larga maioria, estou certo, serão efémeras.
Exactamente por isso, homenagear Carlos Paredes é também fazer a vénia à grandeza moral e cívica de um homem, cuja simplicidade não pode deixar de ser tida como exemplo, num tempo de retóricas balofas e de modas efémeras.
Na verdade, o tempo presente é constrangedor. Imaginar uns certos senhores agora instalados, com uma enorme falta de ideias, desdobrarem-se em discursos permanentes utilizando apenas frases feitas é, no mínimo, inquietante. Seria de bom senso pensar que também eles iriam compartilhar das restrições orçamentais necessárias para baixar o défice das finanças públicas. Mas, como alguém já disse, essa necessidade contrasta com o aumento das mordomias que não passam unicamente pelas viagens ao estrangeiro, os carros e os cartões de crédito; trata-se de toda uma atitude de sobranceria, uma enorme falta de humildade perante qualquer assunto premente e verdadeiramente importante.
Eles são os mesmos que por um lado, nos sorriem e, por outro lado, nos apontam uma arma. A determinação, se acaso existe uma réstia que seja, acaba por descambar em atitudes de show-off e assim lá se desperdiçam as oportunidades e os meios tão necessárias para atacar os reais e crescentes problemas.
A pretexto do aniversário de Carlos Paredes, pretendo contribuir para que não seja esquecido o artista (amador como gosta de ser chamado), que gravou cerca de três dezenas de álbuns e representou o país por diversas vezes, nos quatro cantos do mundo, sempre daquela forma que o caracteriza, com sensibilidade, empenho, força e magia, sem nunca perder a humildade e dignidade; mas, acima de tudo, gostaria de homenagear o cidadão solidário que sempre foi.
Na verdade, são destas referências que precisamos. Confesso que nos faz falta ouvir a música e as palavras sábias do homem a quem a Amália Rodrigues classificou como “monumento nacional”, o mesmo a quem o Poeta Ary dos Santos se referia, constantemente, bem alto e de viva voz: Anos verdes, Verdes anos / Anos verdes da amargura / Nós erguemos aqui / As Paredes da ternura.
Ouvir Carlos Paredes, é ouvir Portugal a lavrar por música as suas mágoas e os seus sonhos, as revoltas e as suas esperanças.
O momento pelo qual o país está a passar é duro. Apesar da confiança no futuro, não podemos ser indiferentes à conversa fiada protagonizada por políticos de trazer-por-casa; falsos profetas, que há pouco mais de um ano se apresentavam como providenciais salvadores, e se apressam já a tentar justificar a sua inércia. Proliferam e desfilam pela feira-das-vaidades, por vezes acompanhados de holofotes, (em palcos espalhados pelo país, pelas regiões e pelas autarquias locais), em regra acompanhados por artistas de aviário – ora aos saltos que mais se assemelham a macacos, ora em bicos de pés para mostrar que berram muito alto – estou certo que ficarão uns e outros muito mal no retrato. Essas atitudes não merecem credibilidade, todavia, a indiferença também não ajuda e, por isso, é importante denunciar.
Tudo isto se passa num país que alguns querem envolver numa guerra que não é nossa, e deliberadamente se esquece de tantos cidadãos como Carlos Paredes de quem, há bastante tempo, me orgulho de ser amigo e admirador!