[ Dia 20-10-2003 ] – Chaleira Damas, vice-presidente da direcção da Pluricoop e director delegado da Pluricoop e da Cooplisboa

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Setúbal na Rede – Perante o tipo de sociedade que temos hoje, quais as potencialidades que tem o modelo de cooperativa?

Chaleira Damas – Essa pergunta poderia levar a outra, que tipo de sociedade se considera a da Suíça ou a dos Estados Unidos? Na Suíça este tipo de cooperativas lidera o mercado e os Estados Unidos são o país onde existem mais cooperativas. Na Noruega, um país com três milhões de habitantes, um milhão de pessoas são sócias de cooperativas. As cooperativas estão também no petróleo, bem como em inúmeras outras actividades.

No nosso caso estamos associados em centrais de negociação, sendo a maior destas centrais também uma cooperativa onde cada associado tem um voto. O modelo cooperativo é um pouco desconhecido, mas ele é muito utilizado. Quando olhamos para economias florescentes, como a de Singapura e da Malásia, verificamos que as cooperativas têm um desenvolvimento que era impensável antes de se implantarem lá essas grandes estruturas empresariais.

SR – Em Portugal, o modelo de cooperativa foi muito usado após o 25 de Abril, vindo posteriormente a cair em desuso por se entender que era um modelo que dificultava acção das estruturas.

CD – O modelo cooperativo assenta nas pessoas, que para nós são o mais importante. A mudança de cooperativa para qualquer outra coisa é uma questão que cai na alçada da lei, já que esses processos são ilegais, porque as cooperativas são construídas com o esforço de muitas pessoas, mas devido ao cansaço de alguns, ou por outros motivos, vão abandonando o projecto e os patrimónios são por vezes vendidos por duas ou três pessoas que delapidam em proveito próprio um património que era de todos. Isso aconteceu, por exemplo, com algumas das rádios locais da cidade.

As cooperativas existem há mais de 150 anos. Surgiram no período da revolução industrial, numa altura em que os trabalhadores tinham poucas condições de vida, e a sua vida era um ciclo fechado. Por exemplo os proprietários das fábricas também vendiam géneros alimentícios e outros, aos seus trabalhadores. Face a tamanha exploração, os trabalhadores associaram-se em sindicatos nas empresas e em cooperativas nos bairros onde viviam e daí alguma conotação das cooperativas com a esquerda política, o que de todo é verdade.

Em Portugal, as cooperativas surgiram para dar crédito às pessoas que viviam com maiores dificuldades e também para apoiar na saúde. O espírito inicial mantém-se ainda hoje e as cooperativas estão mais ligadas às pessoas que vivem com maiores dificuldades. No nosso país, no final da monarquia, as cooperativas tiveram algum desenvolvimento. Com a primeira República também houve um grande crescimento e posteriormente, a partir de 1926 e até ao final da Segunda Guerra, as cooperativas tiveram grandes dificuldades. Antes do 25 de Abril volta a surgir o apoio às cooperativas, com os países nórdicos, nomeadamente a Suécia e a Noruega a incentivarem as cooperativas de habitação, entre outras. Com o 25 de Abril apareceram muitas cooperativas, umas que se suportaram em bases sólidas e outras que nem tanto, daí não terem resistido.

Mais recentemente surgiu a Cooperativa Mar da Palha, com a Expo 98, e a Universidade Moderna. Existem casos em que o modelo cooperativa foi utilizado de uma forma oportunista, tentando aproveitar condições inerentes às cooperativas em proveito próprio. São exemplos do que acabei de referir a Universidade Moderna, onde é difícil reconhecer uma cooperativa, e a Lusíada, que recentemente foi transformada na fundação Minerva através de uma decisão perfeitamente ilegal do Governo. Uma fundação pertence ao sector privado, uma cooperativa ao sector cooperativo e uma empresa pública ao sector público, e é através desta partilha de sectores que está estruturada a nossa economia, o que aliás, a Constituição da Republica consagra ao definir os três sectores de posse dos meios de produção. Quando o próprio Governo transforma uma cooperativa em fundação tudo se torna mais complicado. Relativamente à solução cooperativa, conseguimos, com a nossa experiência, que nenhuma das cooperativas incorporadas na Pluricoop encerrasse as suas portas. Aguentámos todo o embate da distribuição moderna que chegou a Portugal.

SR – Mas só a fusão na Pluricoop garantiu a sobrevivência de muitas destas cooperativas, que isoladas não teriam hipóteses de sobrevivência?

CD – Uma cooperativa orienta-se por sete princípios e um deles é a autonomia e a independência. Quando alguém adere a uma cooperativa nunca lhe é perguntado qual a sua religião e qual o seu partido. Este princípio da autonomia é de extrema importância para uma cooperativa e isso só se consegue através do desenvolvimento económico. Estes espaços têm que ser geridos de forma a decidirem autonomamente o que desejam fazer. O que nós pretendemos na realidade é que a cooperativa seja o somatório do vector empresa com o vector associação, caso contrário temos uma entidade descaracterizada.

SR – Como é que ser consegue o equilíbrio entre a componente associativa e a componente empresarial?

CD – Ganhando dimensão empresarial e envolvendo todos os recursos no projecto. No nosso caso todos os proveitos são reinvestidos na cooperativa, na modernização, na criação de postos de trabalho, na formação dos trabalhadores, o que não acontece muitas vezes nas empresas.

SR – A questão dos lucros é uma das principais diferenças entre as cooperativas e as empresas, porque nas cooperativas os lucros têm que ser reinvestidos.

CD – Os lucros têm que existir, mas não têm necessariamente que ser reinvestidos, essa é uma decisão dos sócios. Existem cooperativas cujos lucros são divididos pelos seus associados. No nosso caso, pelo facto dos cooperadores não entrarem com capital e perante a necessidade de nos modernizarmos, contraímos empréstimos bancários que são pagos com as mais valias que se vão gerando. Os sócios contribuem economicamente comprando os produtos na sua Cooperativa.

SR – Talvez um dos grandes problemas de distribuir lucros numa cooperativa seja o facto de existirem muitas pessoas por quem os distribuir. Quantos associados tem a Pluricoop?

CD – A Pluricoop tem cerca de 57 mil associados. É evidente que o nosso objectivo é praticar preços baixos com a melhor qualidade, mas nós não trabalhamos com produtos de primeiro preço. Muitas vezes olhamos para um produto e consideramos que é impossível que custe tão pouco junto do consumidor final. Mas nestes casos temos que considerar as condições em que as pessoas que o produziram trabalharam e quanto é que elas ganharam. Muitas vezes é preciso pensarmos quantos jovens foram necessários para fabricar uma sombrinha num pobre país asiático e o que se verifica é que esta questão incomoda cada vez menos as pessoas do velho continente, mas para nós é uma situação importante, pois entendemos que tem que haver consciência e responsabilidade social nas empresas, tal como nas cooperativas.

É necessário alertar as consciências para que os produtos tenham um preço justo e não nos cheguem às mãos muito baratos, porque, muitas das vezes, foram utilizadas na produção uma série de pessoas a trabalharem em condições desumanas, já para não falar da fuga ao fisco e da venda abaixo do preço de custo, que como sabe é proibido por lei.

SR – O factor que distingue a Pluricoop é a sua preocupação social?

CD – Nós temos de facto uma grande preocupação social, mas o assunto que acabei de referir está actualmente a ser discutido ao nível da Comunidade Europeia. É necessário averiguar qual a responsabilidade social das empresas. As empresas só existem se existirem pessoas e no caso das cooperativas elas são assumidamente uma associação de pessoas. As empresas não existem se não tiverem trabalhadores motivados, se não tiverem consumidores com poder de compra, logo tem que existir equilíbrio e responsabilidade social. Este assunto vem mostrar que não são as cooperativas que estão fora de moda, mas sim as empresas que aproveitaram a abertura dos mercados e que desregularam o equilíbrio social, um factor que para nós é fundamental.

SR – Como é que se consegue gerir esse equilíbrio quando se tem uma actividade económica com fins lucrativos?

CD – Quando nos relacionamos com um fornecedor temos a preocupação de que essa relação não seja apenas comercial. Além disso, a questão do trabalho infantil e da ausência de direitos laborais está esbatida na Europa, daí a sua dificuldade em ser competitiva. Concretamente, estamos ligados a associações que se recusam a comprar produtos a fornecedores que não respeitem as normas laborais. Temos o caso concreto da banana, que sofreu um boicote dos compradores da Europa do Norte e Central porque no país de origem aplicava os produtos químicos por via aérea, enquanto os trabalhadores trabalhavam nas plantações.

Existem movimentos que estão a acompanhar as actividades dos agricultores para que os 5% de lucro que lhes cabem na comercialização aumentem, diminuindo os 95% que cabem às cadeias comerciais. Quando temos que comprar um produto, nós olhamos para as suas características e para a sua qualidade. Temos o caso concreto da carne, onde os nossos compradores acompanham o crescimento dos animais nas explorações de modo a que não entrem animais injectados nos nossos estabelecimentos. Não temos o preço mais baixo do mercado, mas a nossa carne de bovino e de borrego faz a diferença pela sua qualidade. A mesma situação é válida para o peixe, que procuramos vender sempre fresco. Neste caso, não vendemos peixe à segunda-feira e muitas vezes, nos outros dias vendemo-lo só de manhã. Mesmo sabendo que estas opções são anti-comerciais procuramos manter um bom nível de qualidade nos produtos que conseguimos controlar.

SR – Acha que as pessoas estão sensibilizadas para essas questões, quando existem dificuldades económicas e ao lado existe uma grande superfície com preços mais baixos?

CD – Eu acho que os consumidores têm sido o bombo da festa, todos andam com eles na palma da mão mas o que querem é meter-lhes a mão no bolso. O que eu verifico é que se a cooperativa se conseguiu manter durante um período de grande desenvolvimento e modernização do comércio em Portugal e continua a ter um bom volume de vendas que ultrapassa em três por cento o do ano passado, isto apesar de estarmos a sentir a crise, então devemos concluir que os porque os consumidores estão satisfeitos e reconhecem as diferenças. Esta é uma situação que não é nova, pois em alturas de crise as pessoas refugiam-se um pouco na cooperativa, porque está mais perto de casa e porque no hipermercado estão mais sujeitos às compras por impulso. Nós falamos muito com as pessoas, estamos sempre em reuniões para que o Cooperador seja cativado para os nossos estabelecimentos encontrando aqui a melhor relação qualidade/preço.

SR – Enquanto os hipermercados andam constantemente numa batalha por preços mais baixos, a Pluricoop aposta na fidelização dos consumidores?

CD – Eles andam numa batalha por preços mais baixos, mas quando comparamos os preços de forma séria e alargada, os nossos são mais baixos, essa é a realidade.

SR – Mas não existem produtos que são assumidamente mais caros devido à responsabilidade social?

CD – Quando comparamos o nosso cabaz de compras com o de um hipermercado, ele é dos mais baratos. O consumidor já se apercebeu que existem promoções que não valem a pena e além disso, pode controlar melhor o seu orçamento familiar comprando numa cadeia mais pequena, seja numa cooperativa ou numa mercearia integrada. Neste ramo do retalho alimentar já ninguém trabalha sozinho. Nós mantemos os nossos preços, não fazemos oscilações. Podemos alterar os preços de alguns produtos, porque todos os dias negociamos e compramos, mas temos produtos nas prateleiras cujos preços se mantém há meses. Embora seja anti-comercial, praticamos um conjunto de políticas que dão estabilidade ao preço e confiança ao consumidor. Quando fazemos inquéritos aos consumidores a opinião é favorável quer no preço, quer na qualidade. Outra das nossas mais valias é a inter-cooperação. Nós vamos a Itália, Espanha ou Suécia e durante uma semana, a cooperativa que nos acolhe mostra-nos tudo o que está a fazer para melhorar os seus serviços, ao regressar tentamos implementar essas perspectivas de desenvolvimento.

SR – Como é que gerem a vossa posição no mercado, quando existe uma grande guerra ao nível da publicidade e do marketing nesta área?

CD – Relativamente ao que se passa no mercado pensamos que existem consumidores para todo o tipo de lojas. No que toca à publicidade, nós não precisamos de dizer onde estamos, porque trabalhamos numa lógica da proximidade e mantemos os preços iguais em todos os nossos estabelecimentos. A publicidade é necessária quando temos que ser conhecidos, agora uma cooperativa que existe há 110 anos na Cova da Piedade não precisa de publicidade porque as pessoas sabem que ela está lá e que realiza um comércio ético e justo. Porém, quando aparece um qualquer Fórum é necessário fazer um forte apelo de divulgação.

Neste momento estamos a lançar uma revista, paga por todas as cooperativas associadas, da qual vamos editar 15 mil exemplares, embora tenha quatro páginas de publicidade que será sobretudo institucional. Apesar de ser fácil suportar esta revista com publicidade dos nossos múltiplos fornecedores não vamos entrar por esse caminho. Nós fazemos publicidade por exemplo, quando apoiamos o ciclo-turismo, colocando numa prova 50 cooperadores a pedalar, suportando a Cooperativa alguns dos custos. Temos também dois grupos corais que fazem publicidade nas várias localidades onde actuam. Temos jogos tradicionais onde está presente a nossa marca e apoiamos provas de atletismo e muitas outras iniciativas desportivas, sociais e culturais. Esta é a nossa forma de fazer publicidade.

SR – Nunca perdem então de vista a componente social?

CD – Exactamente, não podemos desvirtuar este projecto. No passado recente uma grande cooperativa do norte, com sede em Braga entrou neste ramo pela via empresarial, fazia muita publicidade mas depois não cumpria os parâmetros de qualidade, além de nunca se ter associado a outras cooperativas e acabou por falir, o que foi uma grande perda porque poderíamos ter hoje uma melhor posição no mercado.

SR – Esta actividade é muito mais do que um negócio ou tem pouco de negócio?

CD – Isto tem muito negócio, porque nós somos uma empresa mas também somos uma associação, pelo que temos que gerir estas duas vertentes. Acredito que temos muito mais dificuldade em gerir uma entidade deste género do que teríamos com uma empresa pura. Há algum tempo a revista Dirigir do Instituto de Emprego e Formação Profissional dizia que “a gestão cooperativa converte boas intenções em resultados” e estes resultados não são apenas económicos. Falávamos anteriormente das preocupações sociais das cooperativas, mas há alguns anos atrás tínhamos em Portugal muitas empresas com esse tipo de preocupações. A Sapec e a Secil são exemplos de empresas que tinham bairros sociais que davam estabilidade aos seus trabalhadores, o que por sua vez se convertia em estabilidade para a empresa.

SR – Actualmente as preocupações sociais são muitas vezes vistas como um entrave para os negócios.

CD – É por isso que hoje estamos a falar da responsabilidade social das empresas. Se fizermos um curso de formação na área dos recursos humanos, todos os formadores são unânimes em afirmar que as empresas têm que assentar os seus alicerces nos recursos humanos, mas para isso têm que lhes dar alguma estabilidade. Não temos pessoas motivadas com empregos precários e actualmente está muito na moda montar uma empresa que usufrua dos subsídios em determinado local e depois vai embora. O nosso modelo de gestão tem dado resultados. Em 1992, um ano após termos iniciado a actividade, tivemos graves problemas porque abriram os hipermercados e nós não tínhamos uma adequada organização. A gestão do actual sistema tornou-se muito mais fácil e eficaz do que o inicial.

SR – O nascimento da Ploricoop é uma reacção imediata ao aparecimento dos hipermercados?

CD – Na realidade sim, ainda que, nos anos sessenta, tenha havido uma tentativa de criar uma união de cooperativas, a Unicoop, que ainda funcionou durante alguns anos em Portugal. Com o 25 de Abril esta união cooperativa acabou por quebrar porque as pessoas estavam atarefadas com outras coisas. O problema da Unicoop consistia no facto de ter lojas próprias e de ter cooperativas associadas com as suas lojas a concorrerem com as da união e vice-versa. Este foi um dos grandes ensinamentos que retirámos da experiência da Unicoop. No modelo actual acordámos que as lojas seriam apenas das cooperativas associadas enquanto a entidade aglutinadora tinha a seu cargo a actividade grossista e todo o serviço administrativo e de logística mas não entrava no mercado de retalho.

Em termos de resultados posteriores a 1991, andámos durante quatro anos com resultados negativos muito avultados e só conseguimos inverter a situação quando nos juntámos com a Cooplisboa – União de Cooperativas de Consumidores, e quando começámos a rentabilizar o nosso património. Actualmente melhorámos muito os nossos serviços, conseguimos combater a quebra desconhecida e os roubos e os resultados são francamente positivos. De momento estamos a trabalhar na informatização em prol dos associados, isto é, vamos ter um sistema informático que dará apoio às vendas, e paralelamente queremos ter outro que permita ao associado consultar os seus dados e estar a par do que se passa na sua cooperativa, utilizando para o efeito o seu computador. Temos também em estudo uma intervenção na área da saúde, um domínio onde pretendemos continuar a investir mas cada vez mais virados para a prevenção, na linha do “saber comprar, saber comer”. Queremos dar uma versão diferente da económica ao consumidor/cooperador

SR – Atendendo a que esta é uma estrutura democrática, onde cada associado tem o mesmo peso, qual o papel que os cooperantes têm nestas decisões?

CD – A forma mais habitual dos sócios participarem numa cooperativa é usufruindo dos seus serviços. Além disso temos os órgãos eleitos ao nível da direcção e ao nível local e nesta perspectiva é necessário que os sócios saiam do seu canto para participar nesta eleição. Quando a cooperativa era apenas uma loja, existia uma lógica de funcionamento, mas ao fim de dez anos e sendo uma cadeia de lojas foi necessário alterar os estatutos e por conseguinte a forma de participação nas assembleias-gerais. Queremos criar uma assembleia de delegados eleitos, de modo a aumentar a democracia na cooperativa, sendo que seriam os delegados a estar presentes nas assembleias e ter o poder de voto, ainda que as assembleias continuem a ser abertas a todos os sócios.

Através da sua federação, as cooperativas reúnem-se periodicamente de modo a definirem estratégias, a perceberem o que está a acontecer no mercado e para isso convidamos as pessoas mais proeminentes em áreas como a económica ou de formação e essas pessoas vão-nos alargando os horizontes e ajudam a definir estratégias. Neste momento estamos a preparar a realização do oitavo congresso de cooperativas de consumidores que se realiza de cinco em cinco anos e que este ano será realizado no mês de Novembro, em Montemor-O-Novo, sob o tema “cooperar, crescer e humanizar”.  seta-8660346