[ Dia 02-02-2004 ] -Entrevistas com Víctor Gonçalves de Brito, administrador do Arsenal do Alfeite.

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Víctor Gonçalves de Brito, administrador do Arsenal do Alfeite
“Sofremos as consequências das dificuldades que o Estado enfrenta”

Criado em 1937, o Arsenal do Alfeite começou a sua actividade industrial dois anos depois, com a finalidade de construir e reparar navios e outras unidades para a Marinha, além de manter uma escola de formação profissional vocacionada para as áreas da construção e reparação naval. Sendo uma empresa tutelada pelo Estado, o Arsenal tem “estatutos próprios que o diferenciam de uma empresa pública”, tal como faz questão de frisar o almirante Victor Gonçalves de Brito, administrador desta unidade fabril, em entrevista ao “Setúbal na Rede”. A sofrer um redimensionamento de pessoal que “se processa com a natural aposentação dos funcionários em idade para tal”, como salienta o almirante, o Arsenal apresenta actualmente algumas carências ao nível da modernização tecnológica, fruto das dificuldades económicas que o país enfrenta. Porém, a esperança num futuro melhor é reiterada por Victor Gonçalves de Brito, que considera a modernização da Marinha como “uma mais valia e um passo importante” para a continuidade e melhoria das condições de trabalho no Arsenal do Alfeite.

Setúbal na Rede – Qual é o estado de saúde financeira actual do Arsenal do Alfeite?

Victor Gonçalves de Brito – Do ponto de vista estritamente financeiro pode dizer-se que gozamos de boa saúde, porém do ponto de vista das necessidades da actividade estamos a sofrer as consequências das dificuldades que o Estado enfrenta e particularmente as Forças Armadas. Na realidade não estamos à “mesa do orçamento” dado que nós vivemos da facturação. Temos como principal cliente a Marinha, sendo a reparação naval a nossa actividade principal. Nesta perspectiva, o problema que nos afecta é o facto do organismo que nos paga ter orçamentos restritivos, o que por sua vez se reflecte na nossa facturação.

Este é um estaleiro muito grande, com vastas infra-estruturas. Em 1979 o Arsenal tinha cerca de 3600 pessoas aqui a trabalhar, mas hoje tem menos de metade e como tal a actividade também tem vindo a decrescer, o que implica que algumas das infra-estruturas não estejam a ser utilizadas na plenitude. Apesar de tudo, essas infra-estruturas existem e deveria haver um maior esforço financeiro para as manter actualizadas e em boas condições. O problema que se põe na indústria de reparação naval é a permanente necessidade de actualização tecnológica e, neste ponto, temos algumas dificuldades. A nossa facturação não tem conseguido disponibilizar as verbas necessárias para mantermos o estaleiro actualizado tecnologicamente, o que no futuro irá exigir um esforço financeiro acrescido.

SR – A facturação mantém o estaleiro a funcionar, mas o que não permite é investir na sua modernização?

VGB – O que nos falta é capacidade financeira para colocar esta organização industrial a par das inovações tecnológicas, algo que era importante ser feito. Como todos temos tido conhecimento através da comunicação social, a Marinha terá uma grande renovação nos próximos dez anos. Fala-se na vinda de submarinos, de navios de patrulha oceânicos, além de outros navios que vão ser adquiridos. Os navios anteriores ao 25 de Abril e que fizeram a guerra do Ultramar vão ser abatidos e a Marinha Portuguesa vai ficar dotada de uma nova geração de navios, pelo que faz todo o sentido que o Arsenal seja também renovado, o que irá exigir um grande esforço ao Estado.

SR – O Estado está alertado para essa necessidade de modernização?

VGB – Existem todas as indicações de que as entidades ao mais alto nível estão alertadas para a necessidade de investir no Arsenal. Em alguns casos, como o dos submarinos, o programa de aquisição prevê um montante que deverá ser utilizado na obtenção de meios para a sua futura manutenção, meios que serão entregues ao Arsenal. Noutros programas, de momento, a situação não é tão clara, mas existem todas as indicações de que há sensibilidade para este problema, quer por parte do Estado, quer da chefia da Marinha.

SR – Este é um momento favorável para o Arsenal que permite encarar o futuro de outra forma, já que a modernização da Marinha pode significar a modernização da empresa?

VGB – O sentimento de quem está à frente do Arsenal é um misto de preocupação com o dia-a-dia, devido a algumas condições de trabalho menos boas, com a motivação e o entusiasmo de que o futuro será muito melhor. Estamos a trabalhar no sentido de identificarmos as necessidades para a apresentação de projectos de modo a que sejam efectuados os investimentos.

SR – Neste momento, até que ponto as carências tecnológicas de que falou comprometem a qualidade do trabalho efectuado pelo Arsenal?

VGB – O reflexo não se verifica na qualidade mas nos custos e nos prazos. Um problema concreto que temos é que os nossos cais não têm profundidade para aceitar alguns dos navios da Marinha, o que implica que nós tenhamos que ir fazer a reparação dos navios mais longe, a cerca de 400 ou 500 metros, com todos os custos de transporte de operários que isso implica. Outro aspecto que nos cria algumas dificuldades é a falta de meios de movimentação e de guindastes, o que se traduz em mais tempo perdido. Na verdade, não está tanto em causa a qualidade do nosso trabalho, mas o tempo que se desperdiça na sua realização e o inerente aumento de custos. Ou seja, a falta de adaptação tecnológica afecta a nossa produtividade.

SR – Os cortes orçamentais na Marinha afectam a manutenção dos navios?

VGB – Existem duas situações diferentes. Relativamente aos navios mais modernos como as Fragatas Vasco da Gama, os navios patrulha mais recentes e os hidrográficos, não têm faltado condições para uma manutenção adequada, pois estes navios são considerados “as jóias da coroa” da Marinha Portuguesa. Além destes, também os submarinos têm tido uma boa manutenção, até por razões de segurança. Relativamente aos outros navios de superfície, porque são navios bastante antigos, a sua manutenção tem sido menos completa, ainda que sem prejuízo da segurança. Em resumo, fazemos dois tipos de manutenção, uma que não tem qualquer tipo de restrições e outra que visa apenas manter a segurança e um nível de operacionalidade minimamente satisfatório.

SR – A decisão do actual Governo de fazer um grande investimento na Marinha Portuguesa é vista por vós como uma necessidade que se impunha?

VGB – Esse tipo de discussão põe-se sempre, sobretudo num país como o nosso que tem algumas carências em áreas básicas. No entanto, a defesa e a segurança para um país que se quer afirmar internacionalmente e que tradicionalmente tem uma posição de prestígio, implica que tenha meios militares próprios, dado que estas funções essenciais do Estado não devem ser alienadas a terceiros.

No que diz respeito às unidades navais, temos duas vertentes diferentes. Temos os navios que se destinam à fiscalização, da pesca, de tráfico de droga ou outras infracções e que são meios de serviço público. Depois temos os meios estritamente militares como os submarinos e as fragatas, com os quais, na minha opinião, temos que contribuir para a segurança internacional. Segundo o meu ponto de vista, no âmbito nacional esta renovação da Marinha faz todo o sentido e os meios que têm sido indicados são os mínimos que estão de acordo com a nossa dimensão. No que se refere ao estaleiro ficamos muito satisfeitos com estas aquisições porque se existirem meios é necessários mantê-los e assim existe uma justificação para a continuidade do Arsenal.

SR – Existe viabilidade económica para o Arsenal se continuar a depender maioritariamente da Marinha?

VGB – Penso que sim. O Arsenal pode ser visto apenas na perspectiva militar ou com uma actividade mais alargada ao exterior e existem discussões sobre qual deve ser a sua dimensão. Eu acredito que existem condições para o Arsenal continuar a ser um estaleiro da Marinha e pontualmente continuarmos a efectuar trabalhos para outras entidades, como temos vindo a fazer. Temos tido alguma cooperação com os PALOP, da qual saliento a construção de duas lanchas para a Guiné e, mais recentemente, a renovação de duas lanchas que foram entregues a Timor.

Eu penso que temos viabilidade, tendo como cliente principal a Marinha, desde que estejamos devidamente dimensionados em termos materiais, humanos e de infra-estruturas.

SR – Esse dimensionamento implica uma redução de pessoal?

VGB – Pode dizer-se que existe mais pessoal do que aquele que seria necessário, mas devemos ter em conta que nós já trabalhamos aqui desde 1939, por isso temos várias gerações de trabalhadores. É evidente que não se espera que um indivíduo que é soldador há 30 anos tenha a mesma produtividade de quando tinha apenas dez de actividade. Podíamos dizer que é possível fazer o mesmo trabalho com menos pessoas, porém temos que atender a esta realidade social.

Concretamente, estamos a elaborar um estudo no sentido de estabelecermos um quadro de referência para determinarmos o número de efectivos mais adequado para o Arsenal. Neste momento temos 1600 pessoas, mas pensamos que com uma redução selectiva de duas centenas, atingiremos o número adequado para o Arsenal do futuro.

SR – O que é que tencionam fazer para proceder a essa redução?

VGB – Nada de especial; a redução será conseguida através das aposentações e de outras saídas voluntárias, pelo que este será um processo perfeitamente natural. Como já referi, temos pessoas com 30, 25 e 20 anos de casa e naturalmente estas pessoas vão-se aposentado. O que vai acontecer é que as admissões serão sempre inferiores ao número de pessoas que vão saindo e serão criteriosamente efectuadas para as especialidades mais carenciadas, pelo que não haverá necessidade de aplicar outras medidas.

SR – Estes trabalhadores estão abrangidos pelo estatuto da administração pública?

VGB – Os trabalhadores do Arsenal têm um estatuto próprio. São funcionários do Arsenal, ainda que como funcionários do Estado, estão sujeitos a um conjunto de regras que são comuns a toda a Administração Pública.

SR – O Arsenal do Alfeite é conhecido, ao longo da história, pelas preocupações sociais. É por isso ou por pertencerem ao Estado que não recorrem aos mesmos expedientes que as empresas privadas para a diminuição de pessoal?

VGB – Sim, isso é uma característica do Arsenal. Tradicionalmente somos solidários e temos uma grande preocupação com as pessoas e o facto de esperarmos pelas saídas naturais e voluntárias é deliberado e tem que ver com essa característica. A propósito de solidariedade, deve-se referir que existe no Arsenal uma tradição familiar, pois com frequência, quem aqui trabalha incentiva os seus familiares para que venham também trabalhar connosco, começando pela frequência dos cursos que são ministrados no nosso centro de formação. Temos muitos funcionários que são filhos, netos e sobrinhos de pessoas que já cá trabalharam.

SR – O espírito de arsenalista ainda existe hoje e como é que se consegue manter esse espírito familiar num universo de 1600 pessoas?

VGB – Consegue-se por tradição e porque, como já referi, existem ligações familiares entre os funcionários. Posso afirmar que esse espírito ainda está presente na generalidade das pessoas, o que aliás foi confirmado num estudo realizado recentemente.

SR – Durante muito tempo o Arsenal foi também visto como uma escola de referência. Actualmente os trabalhadores do Alfeite ainda têm motivos para terem orgulho de pertencerem a esta estrutura? 

VGB – Penso que sim e é nas alturas de maior exigência que isso se nota mais. Para além do trabalho de rotina, quando existe um acidente com um navio e temos que tomar medidas rápidas para o minimizar, nota-se, de uma forma mais saliente, o espírito de grupo e o orgulho naquilo que se faz. A propósito de ser uma escola, o Arsenal sempre o foi e continua a ser, pois faz parte da sua missão.

Institucionalmente, temos um Centro de Formação que funciona com protocolos com o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), o que acontece desde há 20 anos. Neste momento temos 150 estudantes na nossa escola que, em simultâneo com os estudos normais, aprendem também uma profissão. Devo salientar que esta é uma fonte importante de recrutamento de pessoal.

SR – E tem havido procura, numa altura em que as actividades de operariado tendem a ser desvalorizadas?

VGB – A procura tem sido menor, mas temos conseguido cumprir os objectivos propostos pelo IEFP. Os cursos de informática e de electrónica são os mais populares. Apesar das actividades de serralharia, mecânica e electricidade terem menos procura, ainda temos pessoas a concorrerem e a quererem ter formação nessas áreas, até porque isso não invalida que estes alunos continuem a estudar e posteriormente façam cursos superiores.

SR – Num espaço como este, onde existe formação e um grande conhecimento adquirido ao longo dos anos, não poderiam aumentar as receitas exportando serviços?

VGB – Eu acredito que sim, mas neste aspecto a nossa subordinação à Marinha e ao Estado cria-nos algumas limitações, pois nós temos que responder perante a tutela, que é quem tem que definir o caminho a seguir. Não estamos impedidos de procurar trabalho noutras áreas, ainda que não possamos de maneira nenhuma prejudicar a concorrência. No entanto, acredito que dispomos de um grande potencial. Temos laboratórios que muitas vezes são requisitados para determinar a qualidade de vários produtos, além das diversas especialidades da reparação naval serem por vezes solicitadas pelo exterior. O que não podemos fazer é uma comercialização agressiva, até porque não temos efectivos suficientes e porque temos de orientar os nossos recursos para os trabalhos que a Marinha requer segundo o seu próprio planeamento operacional.

SR – Para alterar essa situação seria necessário alterar os estatutos da empresa tornando-a numa sociedade anónima ou numa empresa privada. Algum destes cenários se coloca ao Arsenal do Alfeite?

VGB – Isso depende da tutela do Ministério da Defesa e o que eu posso dizer é que a Marinha pretende que o Arsenal se mantenha sob a sua alçada. De futuro pode existir outra ideia, mas de momento nada indica que o estatuto do Arsenal venha a mudar nos tempos mais próximos.

SR – Ainda que isso diminua a capacidade de rentabilização?

VGB – Sim, seria outro cenário.

SR – Pensa que isso faria sentido, atendendo às dificuldades económicas do país?

VGB – Pessoalmente acredito que esse potencial existe, até porque o nosso leque de empresas de reparação naval tem vindo a diminuir e nós podíamos apresentamo-nos como uma mais valia industrial no porto de Lisboa. Porém, as regras são estas e também faz sentido que o Arsenal se dedique prioritariamente à Marinha.

SR – Outro dos cenários de que se tem falado é a rentabilização do espaço onde está localizado o Arsenal, à semelhança do que está a acontecer com o espaço que foi ocupado pela Lisnave. O Arsenal está firme neste lugar, apesar dos apetites comerciais sobre o espaço?

VGB – Penso que sim, isto porque a área do Alfeite tem um grande perímetro e tem aqui sedeadas várias unidades da Marinha. Sendo também esta uma base militar, existe ainda a Escola Naval, escolas de aplicação, como a de artilharia, de comunicações e de máquinas, além da Base de Fuzileiros. Por todas estas razões acredito que não seria possível a venda dos 35 hectares do Arsenal sem que o resto fosse também alienado, situação que julgo impensável, em particular porque estão a ser feitos investimentos no sentido de serem colocadas aqui mais escolas, e porque recentemente se fizeram melhorias significativas na área de atracação dos navios operacionais. Essa situação está completamente fora de causa.

SR – Esta é a localização ideal para o Arsenal do Alfeite?

VGB – Sim, sendo esta a única base para a atracação dos navios da Armada, penso que esta é a localização mais racional para o Arsenal, quer seja do ponto de vista económico, quer da racionalização da actividade.

SR – Estão bem integrados na região?

VGB – Perfeitamente. O relacionamento da Marinha em geral e do Arsenal em particular é perfeito quer ao nível camarário, quer ao nível das várias freguesias. A maior parte das pessoas que trabalham no Alfeite residem no concelho de Almada ou nos concelhos limítrofes. Existe uma grande ligação e uma grande partilha, pelo que penso que o Arsenal é parte integrante desta região.

SR – Pensa que a situação de crise económica que se vive no país encobre o sonho arsenalista? A entrada no século XXI, com a globalização e as ameaças do terrorismo, podem mudar ou já mudaram a cultura e o espírito interno desta empresa?

VGB – Não, eu penso que não. O Arsenal tem um espaço próprio e enquanto existir Marinha justifica-se a existência de uma organização com estas características e, tal como já referi, a Marinha afirmou recentemente a decisão de manter o Arsenal sobre as suas ordens. O problema que se põe é a actualização tecnológica para o futuro e neste capítulo existem expectativas positivas, porém com alguma prudência, atendendo a que os investimentos necessários são muito avultados e nesta perspectiva existem sempre algumas dúvidas sobre a sua concretização em tempo útil. De qualquer forma, como a esperança é a última a morrer, nós acreditamos que o Arsenal se vai renovar nos próximos dez anos em conjunto com a Marinha. Para nós, é mais preocupante a conciliação das necessidades actuais com os meios de que dispomos no dia a dia do que as expectativas de futuro, que nós acreditamos serem de melhores tempos. seta-4952974