[ Dia 03-02-2004 ] – TIRO E QUEDA por Luís Lourenço.

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TIRO E QUEDA
por Luís Lourenço
(jornalista)
 

Palavras, leva-as o vento…

Miklos Fehér morreu, em campo, ao serviço do Benfica. Era um jovem, com 24 anos e nunca ninguém há-de entender porque é que a morte o levou tão cedo. O país assistiu à morte em directo e ninguém ficou indiferente. Como se a morte em directo fosse diferente de qualquer outra, como se a morte desta ou daquela maneira possa ser mais ou menos chocante… e não é.

Mas foi assim e por isso – aliado ao facto de Fehér ser uma figura pública – esta tragédia foi mais falada, porventura, mais sentida. Daí resultou que muito se escreveu e falou depois da trágica morte do jogador. Acho que ouvi e li de tudo um pouco, desde o comentário ponderado às maiores patetices. Esperaram muitos – vá lá saber-se porquê – que todos nós, todo este povo, teria aprendido alguma coisa com a morte de Fehér.

Falou-se ainda em solidariedade de toda uma Nação. Tentaram alguns imortalizar o “último sorriso do menino”. Questionaram outros – pateticamente – a reacção do plantel encarnado morte do seu colega e amigo. Garantiram uns quantos que o futebol mostrou a sua verdadeira natureza nos momentos de dor. Enfim, julgaram todos, inclusive eu, que alguma coisa iria mudar no futebol português, no país, quiçá, no mundo. Não sei se somos todos ingénuos ou se somos assim porque somos assim.

A verdade é que os factos acabaram por nos mostrar a dura natureza humana, capaz de chorar convulsivamente perante o drama alheio e no momento seguinte conseguir agir com a frieza única de que só o presente conta e só com ele podemos viver. Portugal viveu diferente durante três dias, até ao momento em Miki foi enterrado.

As lágrimas tomaram conta do país nesse período. Depois – perdoem-me o termo – foi o desmontar do acampamento e a vida seguiu e segue como se nada tivesse acontecido. E de facto nada aconteceu a não ser a morte de um jovem. Todos os dias morrem jovens e nada podemos fazer para o evitar. Todos nós vamos morrer um dia e ninguém espera que o mundo acabe. A questão está na nossa própria atitude. Não podemos chorar hoje e rir amanhã como se não tivéssemos chorado ontem. A dor não tem prazo de validade.

A dor sente-se, exprime-se e tem de ficar, de alguma maneira, senão não há dor. Quando damos as mãos e logo a seguir fazemos a guerra, algo está mal no nosso próprio ser. Daí que a critica, que porventura transpareça destas palavras que agora escrevo, não pretenda atingir ninguém em especial. Ela apenas tenta questionar a natureza humana.

Afinal somos feitos de quê? Não sei. Sei apenas que sou igual a toda a gente e toda a gente é igual a toda a gente. Mas como entender tudo o que se tem passado nestes últimos dias no mundo do futebol, tendo como certo que ele não é diferente do resto do mundo? De imediato reacenderam-se as guerras, os insultos, as agressões e tudo o mais que caracteriza a convivência futebolística no nosso país. Uma semana depois o “golo” voltou a ser o mais importante de tudo, a qualquer preço.

Ninguém mais se lembrou da morte de Miki Fehér, nem mesmo no estádio onde o “menino” caiu pela última vez. Sempre esperei ver um jogador que fosse, um treinador que fosse, um adepto que fosse resistir à comemoração de um golo, em nome de Fehér. O golo é mais importante que tudo e a alegria ganha sempre à tristeza. E deverá ser assim? Não sei. Só sei que o mundo continua a girar, indiferente a tudo e a todos. E lá, na distante Hungria, continua a existir uma família que sofre porque perdeu o filho, o irmão e o noivo. Afinal é esse o amor que conta porque só aqueles nunca vão esquecer Miki Fehér. Quanto a todos os outros, as palavras bonitas já foram levadas pelo vento. seta-1739789