[ Dia 12-02-2004 ] – >CRÓNICA DE OPINIÃO por Inácio Videira.

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CRÓNICA DE OPINIÃO
por Inácio Videira
(Animador Cultural)

Carlos Paredes em Movimento Perpétuo

No próximo dia 16 de Fevereiro, Carlos Paredes completa 79 anos de vida. Ainda que há uma década o tivéssemos deixado de ouvir, por motivos de saúde, é de enorme justeza recordar que o mestre da guitarra portuguesa é desde há muito um artista ímpar da cultura musical do nosso país; tendo-se revelado, ao mesmo tempo, o criador, o cidadão interveniente e inquieto, o homem que, com aguda persistência, sentido crítico e autocrítico, nunca se vergou ao peso de quaisquer dogmas.

Um homem interessado pelas coisas que o rodeiam, com atitudes públicas de intervenção, acedeu generosamente a inúmeros convites, viajando incansavelmente de país em país, para realizar concertos como forma empenhada de apoio a causas, projectos e protestos. Um criador singular com uma linguagem musical própria, que se manifestou através da sua obra desde sempre ligada às mais variadas expressões artísticas e culturais de que são exemplo: o cinema, o teatro, as artes plásticas, a poesia e o bailado. Privilegiou o contacto directo com o público em pleno ambiente de partilha sem que alguma vez se tivesse deixado iludir pelo brilho dos holofotes ou capas de revista.

A profunda consciência de liberdade criadora e cívica deu-lhe popularidade e gerou interesse internacional pela sua obra. Os seus trabalhos agradam a gente das idades mais distintas, por ser dos poucos que conseguiu transformar em música as grandes inquietações e dúvidas, os grandes sentimentos e revoltas que pontuaram a segunda metade do século XX. E fê-lo de forma sábia e livre, insubordinando, desafiando e questionando, como sempre acontece com os grandes criadores.

“Enorme, desajeitado, com o seu eterno sorriso tímido de quem pede desculpa de existir. Sentou-se, aconchegou a guitarra a si, agarrou-se à guitarra e a guitarra a ele, passaram a ser um corpo único, um só tronco de música e de raiva, de sonho e de melodia, de angústia e de esperança, exprimindo por sons tanta coisa que nós não tínhamos palavras para dizer” – José Carlos Vasconcelos recordava assim Carlos Paredes após ter assistido, no Teatro Avenida, na Coimbra dos anos 60, a uma inesquecível festa da Tomada da Bastilha que comemorava também o dia do estudante.

Resultado do contacto que venho mantendo com Carlos Paredes, sei que o mestre da guitarra portuguesa foi, por diversas vezes, contactado por uma equipa de especialistas da área musical para que o seu nome viesse a constar num dicionário temático a publicar por uma editora alemã; e fruto dessa amizade sei também que o mestre sempre recusou, por não se considerar merecedor de tal referência. Contudo, fiquei sem saber se a vontade do mestre foi respeitada.

Por isso, recordar Carlos Paredes é sublinhar a importância dum gigante da humanidade e de uma obra feita com o ouro e o trigo dos sons. Mas recordar Carlos Paredes é também e ainda recordar a humildade e a tolerância, a frontalidade e a capacidade do homem que renovou e reinventou a guitarra portuguesa; especialmente a partir de uma geração de 60, revitalizada por novos conceitos sócio-culturais, em que floresciam as vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luiz Góes e António Bernardino, bem como a poesia de Manuel Alegre.

Há muito que partilho da opinião de que a obra e o exemplo de cidadania de Carlos Paredes são de um valor incalculável: seja pelo que compôs, escreveu e disse; seja pela efectiva solidariedade, tantas vezes demonstrada com a coragem da presença e/ou com a discrição de uma profunda modéstia. Pois é. Mas, nos tempos que correm, estes aspectos contrastam com as atitudes dos pseudo-artistas do momento, por um lado; e dos políticos de retóricas balofas, por outro lado. Por tudo isto, e com o toque de perenidade que o seu génio garante, Carlos Paredes continuará na nossa memória colectiva como um incessante “movimento perpétuo”. seta-6135696