[ Dia 11-03-2004 ] – Crónica de Opinião por João Medeiros.

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CRÓNICA DE OPINIÃO
por João Medeiros
(Economista e Professor do Ensino Secundário)


Aborto, o crime está na lei!

Na última semana de Abril, as operárias têxteis de uma cidade portuguesa do interior que se viram de repente no desemprego esperaram pelo patrão à porta da fábrica e, desesperadas por não lhes serem pagos os vencimentos em atraso, agrediram-no duramente. Como a televisão filmou a cena, é possível que estas mulheres venham a sofrer as consequências do seu protesto.

Na semana anterior, o tribunal tinha dado razão às operárias da indústria do calçado que, noutra cidade, tinham ocupado a entrada da fábrica de onde estavam despedidas, a fim de impedir a saída da mercadoria e das máquinas. Na têxtil Fullspin, com três fábricas, as 600 operárias não recebem desde Janeiro. Semanas depois, as operárias de uma multinacional de calçado, a Rohde, manifestaram-se na cidade da Feira, no Norte de Portugal, contra um lay-off que afecta 2500 trabalhadoras. Nestes últimos tempos, milhares de mulheres estão a ser dispensadas no calçado e nos têxteis, por encerramentos ou falências, muitas vezes acompanhadas de retirada de equipamentos e de produtos, apesar de essas empresas terem recebido milhões de euros de subsídios comunitários para garantir postos de trabalho.

A recessão que alastra a toda a economia portuguesa torna-se um pesadelo em primeiro lugar para as operárias. Vivem em pequenas cidades do Norte e Centro, na sua maioria são casadas e mães de família e terão um futuro incerto, pois não encontrarão trabalho equiparado na sua região, com a agravante de muitas delas estarem casadas com operários também despedidos.

Por causa das deslocalizações para países de mão-de-obra mais barata, estamos a assistir ao desmantelamento e reestruturação de um sector essencialmente feminino. Por exemplo, a fábrica de cablagens Yazaki Saltano, em Gaia, já despediu 1100 operários, sobretudo mulheres, desde Outubro. Os equipamentos estão a ser transferidos para Marrocos.

No entanto, pode dizer-se, com propriedade, que as portuguesas se esfalfam a trabalhar: ao nível da Europa, Portugal tem a maior taxa de actividade feminina (em 2001, 45,5%). Talvez por isso e por serem as que têm menos apoios sociais, são as que registam menor taxa de natalidade (1,7). Recebem 71% dos ganhos dos homens. Estão limitadas a sectores tradicionais do emprego feminino e de mão-de-obra mal paga e instável (têxteis, confecções, calçado, indústrias alimentares, indústria eléctrica e electrónica, hotelaria). Em momentos de crise, elas são as primeiras a ser despedidas e as últimas a ser contratadas (em 2001, o desemprego atingiu 5,1% das mulheres e 3% dos homens – isto pelos números oficiais; a realidade é bem superior).

Nas últimas duas décadas, a ofensiva capitalista a que se chama “neoliberal” tem feito recair maioritariamente sobre as mulheres a precarização dos vínculos contratuais, o trabalho clandestino, a erosão dos direitos laborais, o abaixamento do custo da força de trabalho e o desemprego. Por seu lado, o Estado tem vindo a transferir para o trabalho doméstico e não remunerado das mulheres funções de assistência social que antes estavam entregues aos serviços públicos. É sobre elas que pesa a principal carga da redução da intervenção estatal a este nível, pois têm de cuidar a tempo inteiro dos filhos pequenos, dos deficientes, dos acamados e idosos não abrangidos pela previdência social.

Para agravar a situação, o novo Código de Trabalho reforçou a concepção conservadora da família e a precarização de direitos, numa séria ameaça às conquistas obtidas pelas mulheres.

As jornadas múltiplas de trabalho fazem com que 70% das mulheres entre os 35 e os 54 anos trabalhem por dia mais 2 horas do que os homens, porque acumulam tarefas domésticas e de apoio à família. A participação dos homens nas tarefas da casa é sempre esporádica; entre as mulheres, 43,2% trabalha aos domingos; “a ginástica que melhor conhecem é a laboral” (Heloísa Perista). A mulher continua a ser a proletária do homem, a criada para todo o serviço.

Verdades Ocultas

É-nos constantemente apontado que as condições de vida das mulheres melhoraram muito nos últimos 30 anos: já ganham um salário, já participam na vida pública, já podem sair à noite, já vão ao café… É verdade que a inserção da mulher no mercado de trabalho lhe transforma o pensamento e a atitude. Ela valoriza-se como pessoa e ganha uma independência económica que lhe dá algum controle sobre o rumo da sua vida. A religião, o casamento, os filhos e as tarefas embrutecedoras da casa deixam de preencher todo o seu espaço mental e físico. Houve, sem dúvida, um progresso objectivo na sua condição.

Sendo tudo isto verdade, contudo há que dizer que as desigualdades em relação aos homens se mantêm e se agravam. Apesar de o papel da mulher ser cada vez mais indispensável, as discriminações ancestrais subsistem. Prossegue a dominação masculina no local de trabalho, no universo doméstico ou na esfera pública. A participação das mulheres no mercado de trabalho não tem sido acompanhada de mais qualidade e valorização no emprego. Acentua-se a desvalorização do trabalho feminino, aumenta a precarização e a exploração.

Também não há igualdade na esfera política. Nos governos portugueses posteriores ao 25 de Abril, em mais de mil cargos só 58 foram ocupados por mulheres. Num mesmo cargo, por cada mulher houve 34 homens. Na administração pública, o número de mulheres decresce à medida que se sobe na hierarquia. Nas empresas, as mulheres, mesmo as mais qualificadas que os homens, raramente ascendem aos cargos máximos. Em todo o mundo, o panorama é mais ou menos idêntico.

Por causa da violência contra a mulher, não lhe estão assegurados direitos humanos tão fundamentais como o direito à vida, à integridade pessoal e à dignidade. Em Portugal, 52,9% das esposas foram já vítimas de violência conjugal – ou seja, uma em cada duas mulheres foi sujeita a violência física pelo companheiro ou ex-companheiro. Pior: morrem por ano cerca de 50 mulheres em consequência de agressões violentas e de sequelas de maus-tratos. Apesar disso, só há dois anos o Estado passou a criminalizar este tipo de violência.

Em todo o mundo, a violência dos homens contra as mulheres é um fenómeno generalizado e abrange todas as classes sociais sem excepção. Causa mais mortes e incapacidades entre mulheres dos 15 aos 44 anos do que o cancro, a malária, os acidentes rodoviários ou a guerra (Harvard Study, The Global Burden of Disease, 1996). A casa onde vivem é o local mais perigoso para elas, porque é aí que se regista mais violência.
Pior ainda, a violência começa antes do nascimento: devido a infanticídio ou aborto selectivo, há no mundo um défice de 200 milhões de mulheres, segundo estudos da ONU. Será por isso que nascem cada vez mais mulheres e cada vez menos homens, como se a natureza reagisse a esse atentado e procurasse garantir assim a sobrevivência da espécie?

Em Portugal, aumentam as famílias unipessoais (13,8%), e 70% destas são constituídas por mulheres. São famílias mais pobres, mais disfuncionais e mais vulneráveis do que as outras e é sobre a mulher que recai toda a responsabilidade. A vulnerabilidade das mulheres face à exclusão social e a fragilidade da rede de apoio social faz com que a feminização da pobreza se acentue cada vez mais.

Por fim, o mais atávico de todos os crimes: recusar à mulher o direito de decidir quando ter filhos e penalizar o aborto é a forma mais brutal de discriminação e um atentado à liberdade da mulher. Ser mãe não é só um acto físico, é uma empresa que pressupõe, para a mulher, um empenhamento pessoal e emocional para toda a vida, condicionando-a de forma indelével. A mulher não é uma parideira ou incubadora, é o ser humano mais dotado de aptidões naturais e inteligência para criar e fazer crescer outros seres humanos, como tem sido provado ao longo de toda a história natural e social da humanidade.

Uma civilização em que a mulher conte

Todas as medidas paliativas postas em prática pelos governos têm como simples objectivo interesses capitalistas: elevar a taxa de lucro, diminuir custos estatais, minimizar a conflitualidade. Os direitos humanos só lhes interessam se puserem em jogo o direito do capital a uma mão-de-obra escorreita e em boas condições de exploração. Nestas condições, nenhuma reforma, por mais progressista, será suficiente. Com efeito, são precisas grandes mudanças civilizacionais para subverter esta ordem patriarcal.

Disse em tempos uma lutadora, Emma Goldmann: “O desenvolvimento, a liberdade, a independência da mulher devem vir dela e através dela. Primeiro, afirmando-se como personalidade e não como um objecto sexual. Segundo, recusando seja a quem for direitos sobre o seu corpo; recusando ter filhos a menos que os deseje, recusando–se a servir a Deus, ao Estado, à sociedade, ao marido, à família, etc., tornando a sua vida mais simples, mas mais profunda e rica. Isto é, tentando aprender o significado e a substância da vida em todas as suas complexidades; libertando-se do medo do que os outros dizem e da condenação pública.”

E note-se que, até agora, temos estado a falar da situação da mulher em países industrializados. Se fôssemos referir as mulheres do Terceiro Mundo, veríamos que o abismo em que estão mergulhadas é bem mais duro do que as nossas dificuldades. Tudo somado, a persistência em todo o mundo de factores de desigualdade e de discriminação da mulher, enraizados desde há séculos, reforçados e agravados pela globalização do capitalismo, indica-nos como constatação inevitável que o caminho que falta fazer é muito longo e não será fácil de percorrer. Os sinais crescentes de barbárie, visíveis na brutalidade da exploração dos povos, na selvajaria das recentes guerras do Afeganistão e Iraque, na natureza cada vez mais celerada do imperialismo, vão-se delineando com tal clareza que é fácil perceber que só poderão ser conjurados por uma vaga revolucionária geral que tarda em levantar-se.

A revolução pode parecer-nos distante e talvez esteja. Mas o caminho que falta percorrer para as mulheres porem a sua marca própria no levantamento anticapitalista é tão grande, que não se pode perder tempo. É hoje, agora, que tem que começar a derrocada do sistema milenar de servidão da mulher.

Caso a revolta dos oprimidos se verifique antes que ocorra uma catástrofe global, há razões para acreditar que a história do homem, que tem sido também a história da opressão das mulheres, evolua numa direcção diferente, para um mundo construído sobre o caos deste que urge destruir. Aí, talvez se possa dizer finalmente, como Louis Aragon, que “a mulher é o futuro do homem”.  seta-4258422