[ Dia 13-04-2004 ] – ESTAR PRESENTE por António Manuel Ribeiro.

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ESTAR PRESENTE
por António Manuel Ribeiro
(Músico e Autor)
 

Começou a época dos concertos dos UHF. Demos um primeiro espectáculo em Janeiro e arrancámos agora em Abril para mais uma digressão, programada até Novembro, para já. É assim desde há 25 anos e sofreu poucas alterações.

As digressões que se fazem por cá – as Tours – não são delineadas num sentido geográfico lógico. Por isso é francamente possível à sexta-feira um concerto em Viana do Castelo, no sábado estarmos em Lagos e no domingo em Leiria. É assim, anacrónico, porque as digressões são traçadas pelo calendário de solicitações que nos chegam através de uma rede de agentes, mais ou menos profissionais, no terreno, que canalizam os pedidos dos seus clientes: festivais, comissões de festas populares, câmaras municipais, clubes e colectividades, e todos os outros que num esplendoroso momento de inspiração julgam poder ganhar uns euros com a malta da música. Como calculam, com estes patos bravos, há, normalmente, maus resultados. Mas, todos os anos, depois da época primaveril das chuvas, eles aparecem.

À sua dimensão, a equipa que rodeia um grupo profissional e o seu modus operandi, faz lembrar o famoso circo da Fórmula Um. Como eles, também nós andamos com a casa às costas e montamos o estandarte de terra em terra, divertimo-nos, chateamo-nos e ganhamos a vida assim.

Um grupo como os UHF – quatro músicos – precisa de uma equipa directa de mais catorze operacionais: três técnicos principais (som de frente, luz e som de palco), dois roadies (técnicos de suporte directo aos músicos – amplificadores, guitarras e bateria), um vendedor de merchandising, um chefe de equipa (road manager), seis técnicos de montagem e afinação dos sistemas de som e luz (PA) e um condutor de pesados. Estamos por isso a falar de uma média empresa e de uma indústria que produz, a partir do nada (?), o sustento de dezoito homens (muitas vezes dezassete homens e uma mulher).

Na génese desta vida artística, que alegra as romarias e os estádios do país, está a canção, um par de novas canções, um disco novo que sustente outra digressão. É da junção de uma melodia a um poema que nasce “a coisa”, um modo de vida que, perdoem-me os galões, nós inventámos e consolidámos teimosamente por cá desde 1979.

Há por aí uma crise – as novas contas do FMI sobre a retoma fazem crescer o desdito ao primeiro-ministro – que toca inevitavelmente a música, esta indústria de que vos falo.

A música industrialmente pimba, esplendorosa entre 1995 e 2002, vive em estertor descontrolado, agarrando-se a todas as fórmulas para sustentar um dos mais infelizes momentos da música portuguesa. Remetidos para alguns programas de TV, de graça ou a pagar, mostram que o país pode ser azeiteiro até ao enjoo. Subsistem alguns dos seus intérpretes a preços de saldo – o ano inteiro.

A canção, que está na base de toda esta vida, sofre um dos piores ataques à sua sobrevivência. Ele é a pirataria informática caseira e silenciosa; ele é o estúpido IVA de luxo; ele é a pirataria feirante; ele é o boicote à divulgação de novidades nas rádios nacionais.

É um país à deriva, sem desígnio, que alberga este anacronismo cultural, porque a canção, além de arma (José Mário Branco dixit) é cultura, é a memória de hoje, é o cancioneiro da nossa identidade social.

Mas o circo está montado e pronto para partir por aí a distribuir decibéis e refrães, apesar de não sabermos se o novo disco que estamos apaixonadamente a gravar se vai ouvir, apesar da nossa editora – a EMI – não saber se vai recuperar o seu investimento e continuar a apostar na produção nacional.

A rádio, que foi o parceiro natural da canção, tornou-se num complexo e patético esquema de malabarismos estéticos (?), formatada, envelhecida, sem criatividade. Dizem-me que uma certa estação de rádio que passa rock tem feito todos os esforços para entrevistar a cantora norte-americana Janis Joplin, desaparecida há trinta e cinco anos pelo gargalo de uma garrafa de Southern Comfort. Outra estação do mesmo grupo de comunicação – só há três – vai apostar exclusivamente num modelo de informação baseado em notícias com mais de quinze anos para preencher os seus blocos noticiosos de dezassete segundos de duração total. Noutra estação, os jovens locutores, que têm de parecer mais patetas que qualquer puto mimado, foram obrigados a pré-gravar frases específicas a anunciar as músicas da sua playlist – parecem sempre felizes e são iguaizinhos todos os dias.

Entre publicidade, informação sobre as horas, clima e jingles de promoção à estação, algumas rádios gastam o equivalente a quarenta por cento de cada hora de emissão. E nada se passa. Um CD de doze novos temas dura uma canção, quando dura.

Mesmo assim, o circo está na estrada, feliz pelo regresso primaveril e um extenso verão à porta – não vamos a banhos, vamos pelos acordes de cada canção. Mesmo assim, os UHF e os Xutos dividiram durante semanas o mesmo estúdio para aprontar os seus novos discos, como os Clã, os Da Weasel e todos os outros que fazem da música a sua existência.

Até já, numa festa perto de si. O circo está a passar. seta-1007313