EMPRESAS, MOTORES DE DESENVOLVIMENTO DA REGIÃO
Luís Brito, administrador da Fabricor
“Prevejo um futuro negro para
o sector industrial português”
Numa época em que a palavra crise se aplica a quase tudo, Luís Brito, administrador da Fabricor, uma empresa de preparação e transformação de cortiça, afirma que o sector atravessa um período “muito difícil” e aponta o dedo àqueles que “quiseram monopolizar este negócio” e que fizeram “disparar os preços de compra” para valores “exorbitantes”. Em entrevista ao “Setúbal na Rede”, o empresário critica a mentalidade portuguesa que procura “apenas o lucro imediato”, sem investimento, e lamenta que um país que detém 60% da quota de produção mundial de cortiça “não aposte em formação profissional”, já que a indústria corticeira necessita de “mão-de-obra especializada” e a que existe situa-se na “faixa etária entre os 40 e os 60 anos”. A “má preservação” do montado é outra das preocupações do administrador que salienta a “diminuição da qualidade” da cortiça ao longo dos anos e critica os proprietários por optarem pela criação de gado nos montados, uma prática “incompatível” com a produção corticeira. A Fabricor teve a sua origem na algarvia J. M. Brito, que viria a ser extinta quando o seu proprietário fundou uma sociedade com José Jorge Valério no Montijo. Perante a falência eminente do Grupo Valério, a Fabricor voltaria a ser uma empresa familiar que conta com 40 colaboradores e cuja produção se destina em parte considerável ao mercado asiático.
Setúbal na Rede – Portugal ainda é o principal produtor de cortiça do mundo?
Luís Brito – Sim, tem uma quota de produção que ronda os 55 ou 60% da produção mundial.
SR – A crise que se tem vivido um pouco por todo o mundo e particularmente em Portugal, não alterou essa situação?
LB – Em termos de produção, em Portugal, não se alterou nada. A nível mundial tem havido um decréscimo da quantidade de hectares de produção de cortiça, mas a diminuição da população de sobreiros é um fenómeno globalizante que afecta todos os países, quer sejam da Europa, quer do norte de África. Portugal continua a ocupar a primeira posição na produção de cortiça, mas isso não quer dizer que essa posição se mantenha por muitos mais anos, isto porque existe um grande descrédito por parte dos proprietários dos montados na sua manutenção.
O que se passa é que os proprietários se regem pela máxima de que, se dá dinheiro tratamos, se não dá dinheiro não tratamos. Quem tem poucas extracções ao longo de nove anos, o número de anos necessário para que a cortiça possa ser retirada e comercializada, como tem pouca rentabilidade não investe no montado, logo a população de sobreiros tende a diminuir. O que alguns produtores fazem é rentabilizar as suas herdades de todas as formas possíveis, como a criação de gado ou as sementeiras, e o sobreiro é incompatível com quase todas as outras formas de rentabilização.
No caso da criação de gado, o sobreiro é incompatível com todos os animais. O porco, por exemplo, come todo o renovo, o mesmo acontecendo com as cabras e as ovelhas. De todos os animais, na minha opinião, o pior ainda é a vaca, porque além das elevadas quantidades de urina e fezes que defeca, com todos os ácidos que contêm, ainda se roça nas árvores descolando a cortiça do entre-casco da mesma, o que leva à morte do sobreiro a médio prazo. Num montado onde existe criação de gado a qualidade da cortiça tende a decrescer.
SR – Apesar do sobro ser uma espécie protegida em Portugal, essa protecção diz respeito apenas ao abate?
LB – A protecção do abate é relativa, porque quando se quer abate-se tudo e em Portugal o jogo de influências é muito grande. Existem formas de secar árvores rapidamente, consoante aquilo que se pretende fazer. Na verdade é tudo uma questão de fundos comunitários. Se houver fundos as pessoas investem, caso contrário não o fazem. Desde 1998 a cortiça tem tido subidas de 30% ao ano, pelo que chegámos a 2003 com stocks a preços exorbitantes, com 100 mil arrobas a reflectirem um milhão de contos. Como nós precisamos de 300 ou 350 mil, isso representa um investimento muito elevado, que por sua vez implica que a venda também tenha que ser feita por valores elevados.
Na verdade, quem lucra é o proprietário, porque até 2003 o proprietário podia pedir uma determinada quantia e ofereciam-lhe mais. Os proprietários capitalizaram-se muito e tentam fugir sempre à facturação. A Fabricor tem um caso de um proprietário que anda desde 2002 para nos entregar a factura. Apesar da capitalização, as pessoas não investiram no montado, aproveitando o dinheiro para construírem casas ou comprar carros. Na verdade, esta é a mentalidade portuguesa, a busca de lucro imediato para usufruto imediato, sem se preocuparem com a conservação do montado.
SR – Que investimento é necessário para a conservação?
LB – Necessário essencialmente é fazer podas, esgalhar as árvores, passar com uma grade de discos para retirar os matos. Caso seja necessário, deverão ser plantadas novas árvores ou fazer adubações. Pode ser semeada tremocilha, que não afecta o montado e serve depois para a alimentação dos animais. É vergonhoso que muitas herdades estejam tapadas de mato e que sejam os próprios tiradores de cortiça que tenham que desbastar o mato para chegarem às árvores. Todas as árvores que estejam rodeadas de sargaços, estevas e mato bravo têm cortiça de pior qualidade.
SR – De que forma é que as situações que acabou de referir afectam o trabalho da Fabricor, quer a nível da qualidade da cortiça quer de custos de produção?
LB – Com as subidas que se verificaram entre 1998 e 2002 a Fabricor descapitalizou-se muito. Tudo o que tínhamos ganho até essa altura perdeu-se e essas perdas têm a ver com preço e qualidade. Normalmente nós apostamos em cortiças de média e alta qualidade porque não trabalhamos com derivados e não temos margem de preço para trabalhar com fraca qualidade. O que aconteceu nos últimos anos é que tivemos que despender muito dinheiro e não obtivemos retorno do investimento.
Este ano comprámos em média dez euros mais barato, o que é significativo, pelo que esperamos ter mais margem, isto apesar da qualidade ter diminuído cerca de 15%. No entanto, apesar da diminuição do preço, os custos directos, com pessoal, combustíveis e fornecimento de serviços externos, têm vindo a subir. Nós não trabalhamos com pessoas de elevada formação académica, mas trabalhamos com pessoas especializadas neste sector que são pagas muito acima do que é indicado nas tabelas. Por exemplo, um traçador ganha entre 600 a 750 euros líquidos por mês e um escolhedor vai dos 800 aos 1500 euros, isto para pessoas que têm especialização no sector e não formação académica. O problema com que nos deparamos é a escassez de pessoas que tenham qualificação para desempenharem essas funções.
SR – Não existe renovação da mão-de-obra nesta área?
LB – Não existe renovação e a faixa etária com que trabalhamos vai dos 40 aos 60 anos. Apesar de em alturas de crise a mecanização não ser tão rentável como a produção semi-automática ou manual, se no futuro não houver mão-de-obra temos que arranjar alternativas, ou corremos o risco de desaparecer. As escolas profissionais não lançam pessoas jovens para este sector, nos centros de emprego apenas conseguimos arranjar pessoas com mais de 60 anos ou já reformadas, mas a verdade é que essas pessoas não dão garantias de continuidade. Os emigrantes de leste são uma alternativa mas estão limitados nos trabalhos que conseguem desempenhar.
SR – Sendo a produção de cortiça uma actividade com um peso económico significativo para o país, não seria normal investir em formação profissional para manter esta actividade?
LB – Actualmente as pessoas não têm espírito de sacrifício, ninguém veste a camisola em lado nenhum, as pessoas vendem-se e prostituem-se por cinco ou dez contos. Hoje em dia não existe a mentalidade de entrar numa empresa e pensar que não tendo estudado, não se tem grandes alternativas e então se deve apostar na qualidade do que se faz. Trabalha-se em determinado sítio porque não existe mais nada, toca para entrar e as pessoas deslocam-se para o local de trabalho, quando toca para sair correm para irem embora, sem terem o brio profissional de terminarem o que estavam a fazer. Essa é uma situação que nós observamos em pessoas dentro da faixa etária dos 30 a 40 anos.
Prevejo um futuro negro para o sector industrial português, em particular para fábricas perto de centros desenvolvidos. Actualmente, com a Ponte Vasco da Gama e com os espaços comerciais que vão abrindo no Montijo, as pessoas acabam por preferir fazer outros trabalhos que lhes tragam rendimento imediato superior sem pensarem na estabilidade a longo prazo. Em situações de aflição recorrem a situações temporárias, porém desertam à primeira dificuldade.
SR – Isso faz prever um cenário negro para o sector da cortiça?
LB – Nesta zona do país sim. Eu costumo dizer que de Leiria para baixo o país trabalha ao sabor do vento e de Setúbal para baixo é ao sabor do tempo, do logo se faz. Até há pouco tempo tivemos fábricas no Algarve e no verão era o cabo dos trabalhos, pelo que até cheguei a ter que acordar as pessoas para virem trabalhar para poder cumprir os compromissos. Se formos para o norte as coisas mudam de figura e no pólo industrial de Santa Maria de Lamas vemos as pessoas a ganharem menos mas a trabalharem com gosto, até parece que estamos noutro país, pois ali trabalha-se. Com a atribuição de fundos comunitários assistiu-se à descentralização da indústria corticeira para Ponte de Sor e Coruche, sendo que esta última região se debate com o mesmo problema de falta de pessoal que nós. A região de Coruche está muito habituada ao trabalho sazonal e as pessoas não estão para se chatear todo o ano dentro de uma fábrica.
SR – Nesta fábrica não tem sido possível mudar essa mentalidade?
LB – Aqui não há grandes alternativas, ou as pessoas rendem ou saem. Aqui as pessoas são controladas por objectivos, por produção individual e em cada semana dois operários são alvo de um controlo mais apertado. Para podermos manter todas as estruturas da empresa, temos que ter objectivos elevados para todas as semanas. Se for necessário fazer horas, nós fazemos e as pessoas têm aceite bem esta forma de estar, até porque têm consciência do que tem acontecido com este sector na região do Montijo, com muitas fábricas a desaparecerem.
Não obrigamos ninguém a trabalhar connosco, mas quem fica tem que beber a cultura da empresa, que se resume a agressividade, produtividade e rentabilidade. O não cumprimento dos nossos rácios nos últimos anos não se deve a uma política de compras errada, mas sim a elevados investimentos que começaram a laborar em 2000 e a um sector em crise com preços de compra elevados, baixa margem na venda e qualidade decrescente da matéria-prima.
SR – Face à concorrência em que patamar está esta empresa?
LB – Temos uma produção diária que duplica a do conjunto das empresas deste sector no Montijo. A nossa média de produção situa-se entre as 170 e as 200 unidades diárias quando a média no Montijo por empresa se situa nas vinte ou trinta. E tudo isto com poucas pessoas a trabalhar, pois em 2002 tínhamos 75 pessoas connosco, num sector que já estava mal e que actualmente vive uma crise brutal, muito por culpa daqueles que quiseram monopolizar o mercado e fizeram disparar os preços de aquisição.
Um outro fenómeno que se verifica neste mercado é que muitas pessoas compram a cortiça no mato e quem compra não tem a mínima noção de produção e também não se preocupa porque não tem dinheiro empatado, algo que não acontece noutras empresas do sector. Numa fábrica temos que comprar, transformar e vender, o que muitas vezes não é fácil. Neste sector é quase impossível pôr o produtor, o comercial e o transformador de cortiça a falarem a mesma língua, já que cada um procura o que mais lhe interessa, o que só traz instabilidade. Na Fabricor não temos esse problema porque congregamos as três áreas dentro da nossa unidade, cada pessoa da administração é capaz de produzir ou vender consoante as necessidades que tivermos.
SR – Qual o peso que esta empresa tem no mercado internacional?
LB – A nível de mercado internacional exportamos sobretudo para o Oriente, onde temos uma cota de cerca de 60% no mercado chinês. De início tivemos alguns problemas porque o nosso principal concorrente era o Grupo Amorim, mas acabámos por conseguir impor a nossa qualidade e rectidão de trabalho.
SR – Como é que uma empresa tão jovem conseguiu implantar-se desta forma?
LB – Nós somos uma empresa originária do Algarve. A empresa começou com o meu avô, depois o meu pai veio aumentar um pouco a estrutura e em 1988 foi convidado pelo senhor José Jorge Valério, um industrial credenciado na região do Montijo, para entrar numa sociedade e ele aceitou. Ao fazer a sociedade a J.M. Brito foi extinta. Em 1998, para não sermos arrastados pela falência do Grupo Valério, desfizemos a sociedade e entrei eu na empresa. O projecto desta fábrica já existia no tempo da sociedade, nós ficámos com ele, investimos e implantámos a fábrica onde estava planeado.
Temos vindo a crescer, em 1998 tínhamos três pessoas a enfardar cortiça, com uma média de 100 fardos por dia, com 75 colaboradores, e actualmente temos 40 pessoas com quase o dobro da produção. Em 2004 os nossos rácios têm melhorado, ainda que a situação se mantenha difícil por estarmos muito expostos ao câmbio. Aproximadamente 40% da nossa produção destina-se ao mercado externo, sendo grande parte para o mercado chinês, que começa a ser um mercado complicado.
O mercado chinês gastava gamas médias/fracas que pagava em dólares e actualmente começa a querer gamas médias/boas e quer pagar também na mesma moeda, sendo que nós só temos margem para vender em euros. O que acontece é que a China tem um acordo cambial com os Estados Unidos e não têm flutuação de câmbio, algo que não se passa com a Europa. Por outro lado, todo o sector industrial tem sido afectado pelo aumento do preço do petróleo e nós não somos excepção. Resumindo, e em relação à pergunta, não somos muito antigos mas temos muita força de vontade.
SR – Perante o cenário que traçou, qual a situação financeira da empresa e como é que perspectiva o futuro?
LB – Após um grande investimento, neste caso, um milhão e meio de contos, andámos dois anos um pouco tremidos. Optámos por investir em tecnologia, nomeadamente na cozedura e no controlo de produção. Actualmente, o primeiro semestre de 2004 apresenta bons resultados, o mês de Agosto foi um pouco mais fraco, mas esperamos terminar o ano com resultados positivos.
SR – O que ganha esta região por ter a Fabricor aqui instalada?
LB – Basicamente ganha 40 postos de trabalho. Não somos beneficiados pela autarquia, pois inicialmente prometeram-nos a construção dos esgotos mas não passou de promessas, e quem teve que construir a ETAR fomos nós, num investimento de quase 250 mil euros.
SR – Esta é uma empresa bem integrada na região?
LB – Sim e não, pois se estivesse mais fora de uma zona urbana, as pessoas não se tornariam tão agressivas quando lhes é pedido um esforço extra, porque não tinham grandes alternativas. Porém, nesta fase de produção, só poderíamos sair daqui se a mão-de-obra nos acompanhas, porque a mão-de-obra é fundamental neste sector. Mas se um dia tiver uma boa proposta de compra, não é inegociável vender a empresa.