[ Setúbal na Rede] – Património – Opinião

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OPINIÃO
Jorge Raposo
(
Arqueólogo e director da revista Al-Madan,
editada pelo Centro de Arqueologia de Almada)

O chão que pisamos nas nossas cidades

Não há muitos dias atrás, o chão da Baixa começou a abater debaixo dos pés dos lisboetas e dos muitos transeuntes da “Outra Banda” que por aí circulam, abrindo buracos a um ritmo preocupante. Surpreendidos, os poderes públicos tardaram a responder. Mas seria este facto assim tão inesperado?

Talvez não. Se recuarmos um pouco mais, a mesma comunicação social que agora tratou amplamente o tema, veiculou por inúmeras vezes reportagens e textos de opinião de técnicos dos mais variados quadrantes, alertando para a especificidade do subsolo desta parte da cidade, especificidade essa que se reflectiu também na adopção de técnicas construtivas muito particulares aquando da reconstrução pombalina motivada pelas consequências do terramoto de 1755.

De facto, os depósitos aluvionares que cobrem toda a zona são atravessados por um nível freático que chega aos 40 metros de profundidade, por onde se escoam as águas que antes corriam a céu aberto pelas ribeiras hoje ocupadas, grosso modo, pela Av. da Liberdade e pela Av. Almirante Reis, que confluíam na zona do Rossio-Praça da Figueira antes de desaguar no Tejo. A equipa de arquitectos chefiada por Manuel da Maia concebeu então uma solução extremamente imaginativa, suportando as novas construções numa estacaria de madeira que se adapta muito bem a esse tipo de solos e assegura igualmente uma função anti-sísmica. Naturalmente, essa estrutura de madeira só sobreviveu até aos nossos dias, sustentando os edifícios que contribuem para fazer de Lisboa uma das mais bonitas capitais europeias, precisamente porque a permanência dentro de água evita o seu apodrecimento.

Contudo, o sistema engendrado pela criatividade e profissionalismo dos arquitectos e engenheiros da época resistiu à passagem dos anos mas sobrevive cada vez com mais dificuldade à irresponsabilidade com que, nesta e em praticamente todas as nossas cidades, se descura o planeamento e a gestão eficaz do território, privilegiando antes o imediatismo dos ciclos políticos quadrienais.

Há mais de dois anos (Expresso, 2000/07/01), o arquitecto Ribeiro Telles, por exemplo, alertava uma vez mais para o risco resultante de licenciamentos avulsos para a zona e, principalmente, para as consequências de um modelo de desenvolvimento que continuava a apostar em trazer o automóvel bem para o centro urbano, com a construção de dez parques de estacionamento subterrâneos, quase todos eles em plena bacia hidrográfica, sem que alguém se preocupasse com o estudo das alterações que isso provocaria no nível freático e na circulação das águas no subsolo. O responsável autárquico pelas infra-estruturas fazia gala disso mesmo, dizendo textualmente: “Só fazemos estudos pontuais para cada obra, mas não vemos necessidade de os fazer globalmente”!

O parque da Praça da Figueira, localizado numa das zonas mais sensíveis, como vimos, é exemplar do autismo com que frequentemente se reage às posições incómodas dos que persistem em argumentar contra o primado dos critérios técnicos ou políticos mal sustentados. Um amplo debate, potenciado pela celebração, ainda que inconsequente, do Dia Internacional das Cidades Sem Carros, mostrou como era possível uma outra atitude, mais adequada ao desenvolvimento harmonioso da cidade e à qualidade de vida de quem nela habita ou trabalha. Várias intervenções alertaram para a insuficiente ponderação das inevitáveis consequências que essa forte “betonização” teria no regime de drenagem de águas em toda a Baixa pombalina. Para além disso, muitas vozes se ergueram contra a destruição de vestígios arqueológicos cuja importância era bem conhecida desde as primeiras obras do Metropolitano de Lisboa, no início dos anos 1960.

Neste último plano, acabámos por assistir impotentes ao desespero de uma equipa de arqueologia com muito pouco tempo e recursos, tentando antecipar-se às máquinas que demoliram o que restava das estruturas do antigo Real Hospital de Todos-os-Santos, a primeira grande unidade de assistência hospitalar do nosso país (mandada construir por D. João II em 1492, terminada em 1503 e arrasada com o terramoto de 1755), desmontaram testemunhos até aí desconhecidos do urbanismo da cidade na transição dos séculos XI-XII, arrasaram parte de uma imponente necrópole romana sem que fosse possível contextualizá-la devidamente… Enfim, uma série de malfeitorias que não seria de esperar numa obra pública: falta de visão estratégica quanto ao papel a reservar ao veículo privado nos centros urbanos, insensatez perante opiniões técnicas altamente qualificadas, insensibilidade perante a perda irreparável de elementos fundamentais para a reconstituição do percurso histórico do espaço de que hoje usufruímos.

Ora do que precisamos é de modelos de desenvolvimento local e regional sustentados num aproveitamento equilibrado dos recursos disponíveis (incluindo os patrimoniais), com objectivos claros e planificação atempada, e não de aprendizes de feiticeiro que se revelam incapazes de controlar os fenómenos que eles próprios desencadearam.

Não é por acaso que, só agora, a Câmara Municipal de Lisboa anuncia ir “monitorizar o subsolo”, de forma contínua, uma vez que, como admite de novo uma fonte da autarquia, ninguém conhece “exactamente o comportamento freático da Baixa” (Público, 2002/12/08). É lamentável que tanta gente tenha voltado a ter razão antes de tempo.